Vem
Porque os dias quebravam contra sua cara,
porque trocara as horas por nada,
quis o espinho extremo.

Mas, sobre encontrá-lo, ninguém
nem nada respondia. Saberia reconhecê-lo
em meio a tudo? Algum sinal?

Um cisne gravado na testa? Talvez
bastasse, à distância, atentar
nos modos de dobrar

ou desfazer as frases, um lenço, que
talvez ali, no levar água à boca, moeda
à bolsa, banal, vislumbrasse

um rasto, imaginava, mesmo sem saber
(não saberia nunca?) o que fosse
aquilo que faria do acaso

o certo,
até que se manifestasse numa forma
inadiável, que figuraria o fruto de

uma longa matemática. Porque seria assim,
poderia ver na matéria mínima a sua fábrica,
o incêndio

que sobreviria contra a indiferença dos seus dias.
Mas as ruas são compridas, era preciso
estar mais perto para perceber, e

logo baralhava unhas, vozes, cabelos
à maneira de uma teia aos pedaços que
o fazia adolescente como um pombo

tonto. Mesmo sem vestígios, farejava.
Em meio à palha das palavras, farejava.
O que as costelas dos viadutos escondiam?

Becos, praças, ruas, paisagens que lhe subiam
à boca enchendo-o de inocência e desejo.
Era mais seguro não querer. Mas

envenenara-se com o anseio de que
a cidade desaguasse em alguém, não fosse tão-só
pedras de seus olhos se ferirem. Mais seguro

era cegar as vontades. Cerrados, os olhos
calariam o teatro excessivo dos gestos. Talvez
dormisse. Mas a insônia vinha branca

e ácida e alta. Houve uma vez um comandante
prussiano, recostado ao fundo da poltrona,
cavando com as esporas de sua bota o mármore

da lareira, lembrava-se, era mais fácil
deixar a solidão crescer no vento, vir ao quadril,
lembrava-se do conto enquanto seus olhos

erravam pelas avenidas, esperança em pêlo, juízo
em vão, fome de um relance, um fio. Suave,
se ainda soubesse, era beber sem supor alguém

após o drinque, gastar-se só, sem presumir
um abraço à saída do cinema, à saída de
sábado. Mas ele sacrificaria qualquer ponderação

para persistir no engano de seguir
à própria sorte por mundos que semelhavam
estacionamentos abarrotados de frases moles,

blogs, celulares, fazer amigos, impressionar pessoas,
dicionários como se fósforos para queimar o tempo,
o tédio, saudades de quando não vagava devastado

pela espera (pela espora, dizia o conto)
de uma lâmpada após o labirinto,
por aquela presença tão-só pressentida,

mas que talvez por adivinhada ardia ainda mais.
Tudo (um exagero) escarnecia dele, sequioso de que
regressasse quem nem mesmo houvera, Ulisses

ou o filho pródigo caminhando sobre o mar
etílico, turbulento. Canções de amor
foram o seu veneno,

todas à roda da mesma víscera,
da mesma válvula sentimental,
podia senti-la,

sem amores nem romances, sangue
e bomba apenas, como no peito de um bicho,
que é só um bicho. Então, exausto,

sem nenhum grito, deitou-se
sobre a pedra escura da rua, ou da escarpa
mais alta, ou da lua mais miserável e suja.

Esteve ali, parado, manso,
talvez por anos, sem que nada pedisse
ou pretendesse. E era só uma noite

entre as noites, quando despertou agitado
(deve ter sido assim) pela visão de uns lábios,
vinham acesos, na direção dos seus.



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