Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade – correspondência
As cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade vieram à luz pela primeira vez em alguns fragmentos, transcritos por este em crônica intitulada “Suas cartas”, publicada em março de 1944 no jornal Folha Carioca (mais tarde reproduzida no livro Fala amendoeira). Trinta e dois anos depois, outra amostragem, ainda tímida: as duas primeiras cartas enviadas pelo modernista ao jovem poeta mineiro apareceram reproduzidas na revista literária José (número 4, Rio de Janeiro, outubro de 1976). Ali, em breve nota, Drummond apontara para a questão central daquela publicação: “Publico suas cartas por estar convencido de que elas, como toda a vastíssima corespondência de Mário, transcendem a área da comunicação entre amigos para se caracterizarem como textos de reflexão de grande proveito no debate, jamais esgotado, sobre a aventura criativa.” Tal convicção levaria à publicação do conjunto de cartas enviadas por Mário num volume a que Drummond deu o nome de A Lição do amigo (Rio de Janeiro, José Olympio, 1982).

O que se publica agora é a correspondência completa, ou seja, as cartas de Mário de Andrade para Carlos Drummond de Andrade e deste para Mário, cobrindo o período de outubro de 1924, após se conhecerem em Belo Horizonte, a fevereiro de 1945, quando da morte do mestre paulista. A Revolução de 30, a Revolução Constitucionalista de 1932, o ministério de Gustavo Capanema e outros momentos fundamentais da história brasileira, mais que panos de fundo, aparecem como quadros em que se situam e atuam os dois missivistas. A exigência de uma aliança entre artistas, escritores, poetas e intelectuais e o quadro maior da cultura brasileira comparece, por exemplo, já nas críticas iniciais de Mário à influência de Anatole France na formação de seu jovem correspondente. A questão central era, então, a busca modernista de uma brasilidade sem recalques. Mais adiante, outras questões ético-estéticas viriam à tona, quando simultaneamente se fortalecia o afeto, a amizade, a intimidade entre os dois amigos. Com a leitura das cartas podemos avaliar o quanto certos interesses, dúvidas, convicções e uma variada gama de idiossincrasias estenderam-se dos limites individuais aos poemas de Mário e de Drummond, donde uma patente conversão do dado biográfico em tema ou mesmo traço estético-estilístico na obra de ambos. O prefácio de Silviano Santiago, na trilha aberta por Drummond na sua introdução para A lição do amigo, reafirma o quanto correspondências, diários, entrevistas e outros documentos da intimidade podem ser convertidos em bens de grande valor para a teoria literária e, no caso presente, o quanto as cartas são preciosas para o conhecimento da obra dos dois poetas e da história do modernismo, em particular o período seguinte à Semana de Arte Moderna.

Num livro desta natureza, as notas são fundamentais. Elas são um texto à margem, sim, mas, em grande medida, são responsáveis pela nitidez e alcance do que se considera o eixo central. Ou seja, é a margem (ao contrário do que se convencionou ajuizar com o uso de tal termo) que nos assegura um conhecimento mais amplo, seguro e crítico, reforçando a significância das cartas para além do perímetro instituído entre os missivistas.

O estabelecimento de notas exige atenção, sensibilidade, conhecimento, pesquisa. Tudo isso e não só isso. O anotador tem de lidar todo o tempo com o “limite”. Afinal, ele institui uma terceira voz (silenciosa ou não, de acordo com a vontade e o interesse do leitor, que, decerto, dela pode prescindir), definindo-lhe a “altura”, o “tom”, o “ritmo”, o “registro” etc. E, antes disso, deve decidir o que dizer, como dizer, quando dizer. Estas são, sem dúvida, questões que se colocam para todo aquele que fala/escreve. Mas aqui (e refiro-me amplamente a toda edição de correspondências), a condição interpositiva acrescenta certas nuanças. A mais flagrante: a voz do anotador instala-se paralelamente a um diálogo já estabelecido a fim de pôr em funcionamento um outro diálogo – com o leitor. Tais observações, mais ou menos óbvias, servem-me, em primeiro lugar, para sublinhar a importância das notas e apontar para o mais grave problema desta edição: o grande número de notas escritas por Carlos Drummond de Andrade e publicadas em A lição do amigo foi reproduzido sem que se identificasse esta autoria. A ficha técnica estampada no verso da folha de rosto apenas registra (após informações como o nome da responsável pela “Acessoria jurídica”) em letras de corpo bem menor: “Edição base para as cartas de CDA – A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Rio de janeiro: Record, 1988.” A informação é vaga, servindo tão-só para atestar que aquele livro serviu para a reprodução das cartas de Mário, permanecendo em silêncio a questão das notas. Além disso, o leitor, por mais atento e detalhista, já foi informado na capa e na folha de rosto que Silviano Santiago é o responsável pelas notas da edição. A partir daí, forma-se um imenso mal-entendido: passamos a ler as notas escritas por Drummond como se tivessem sido redigidas por Silviano Santiago. Apenas as notas escritas em primeira pessoa (onde o anotador afirma, por exemplo, que mudou o título de um determinado poema) acusam o erro. Mas, ao lê-las, hesitante, o leitor que se dispuser a procurar algum esclarecimento não o encontrará. (Também não há qualquer menção ao fato de que foram aproveitados d’A lição do amigo os apêndices 1, 2 e 3 e que, portanto, apenas os dois seguintes foram elaborados por Silviano Santiago; o de número 4 termina com as iniciais S.S.; a maior parte dos leitores não compreenderá as iniciais ou a razão de estarem somente ali). Quando acrescentou informações às notas de Drummond, Silviano teve o cuidado de marcar estes seus momentos de fala com uma designação prévia: “Adendo”. Estes e outros cuidados tomados pelo anotador das cartas de Carlos Drummond de Andrade foram de pouca serventia, visto que a organização do volume deixa muito a desejar. Quanto a quem responde por ela, lê-se na capa: “Organização e notas de Silviano Santiago”. Na folha de rosto, porém, dá-se a informação: “Organização e Pesquisa Iconográfica de Lélia Coelho Frota”.

Ainda sobre as notas, é preciso registrar o quanto Silviano escolhe com grande acerto os momentos de incluí-las. Ele convida o leitor a pensar sobre os pontos que lhe parecem interessantes, ou turvos, quando dá à sua fala sempre a medida certa. O leitor, que não desconfiava da importância deste ou daquele trecho, descobre com satisfação que ali se escondia um momento-chave. A nota de Silviano Santiago aparece, então, esclarecedora sem nunca se sobrepor às cartas com exibicionismo crítico ou documentação aparatosa. O mesmo deve ser dito sobre as notas de Drummond às cartas de Mário. Neste caso, porém, a condição de anotador-destinatário acrescenta às suas observações um conhecimento único.

Numa trama de vozes como esta, há que se ter todo cuidado com o excesso. Os dois anotadores seguiram por aí. E saíram-se exemplarmente. Não há, em contrapartida, economia semelhante na programação visual do volume, onde sobejam imagens (muitas absolutamente desnecessárias) que interrompem a leitura constantemente. A redundância rompe por completo com o fluxo do texto escrito, e se o leitor pode ignorar as notas e optar apenas pelo curso da correspondência, não tem como fazer a mesma escolha quanto às ilustrações, que todo o tempo fragmentam e desviam a leitura, tornada confusa e cansativa. Os efeitos plásticos obtidos com certas imagens podem ser, e o são algumas vezes, belos e interessantes; mas, também é certo, não raro alcançam o exagero e avançam mesmo ao ponto de tornar praticamente ilegível o texto escrito (é o ocorre, por exemplo, à página 169, onde as notas não podem ser lidas senão com muita dificuldade).

A qualidade gráfica do volume é excepcional, fator decisivo para que se garantisse a qualidade do trabalho realizado por Lélia Coelho Frota, responsável pela pesquisa iconográfica. Sem se limitar à repetição de imagens largamente reproduzidas, o levantamento reuniu fotografias, documentos e obras de arte que compõem um conjunto expressivo que ajuda a reconstituir as épocas e materializar certas passagens das cartas. O número excessivo, no entanto, e o projeto gráfico pesaram sobre o texto da correspondência.

Há que se assinalar, igualmente, a desastrosa revisão. Além dos muitos erros ortográficos, há problemas decorrentes da falta de padronização, como a flutuação quanto ao uso de maiúsculas, itálicos etc. Apenas um exemplo: à página 46, a numeração indicativa das notas aparece na estranha seqüência 9-11-3 (indo a elas, vemos que correspondem corretamente aos lugares em que os números foram colocados, apesar do erro em sua ordem). Estes e outros deslizes expõem a lamentável negligência de tantas editoras com certas etapas de realização do livro, que, “subterrâneas”, vêm à tona quando da publicação.

A publicação desta correspondência era há muita esperada. O livro, não obstante todos os problemas de edição, é imprescindível. A conversa entre Mário e Drummond encerra um ensinamento extraordinário para qualquer um que se interesse pela história da literatura moderna no Brasil, vista pelos olhos da poesia, da criação, da amizade.



Resenha de Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade (org. e notas de Silviano Santiago. Rio de Janeiro, Bem-Te-Vi, 2003), em Metamorfoses. Cátedra Jorge de Sena para Estudos Literários Luso-Afro-Brasileiros (FL/UFRJ), nº 4, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/Caminho, 2003.