Palavras plásticas
Expoente da geração 90 de poetas brasileiros, Eucanaã Ferraz diz que gostaria de fazer com seus versos o que Franz Weissmann faz com suas esculturas, conta como a pintura Matisse o levou para a escrita e fala de suas referências no Brasil e em Portugal.

Eucanaã Ferraz, carioca, 41 anos, é um dos melhores poetas da safra 1990, ano no qual lançou seu livro de estréia, intitulado Livro primeiro. Daí para frente publicou Martelo (7Letras, 1997) e Desassombro, primeiro publicado em Portugal pela Quasi Edicões em 2001 e, em seguida, pela 7Letras em 2002. Poeta rigoroso, dono de seu métier, Eucanaã é o que se poderia chamar de um escritor “vocacionado”. É professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre e doutor em literatura com teses sobre Drummond e Cabral, respectivamente, e trabalha como ninguém a conexão poética Brasil/Portugal. Conheci o trabalho de Eucanaã ao organizar o volume Esses poetas - uma antologia dos anos 90, quando me surpreendi com seu talento sensível e perfeccionista, de escultor da palavra e do verso. Em dezembro passado, Eucanaã conquistou o prêmio Alphonsus de Guimaraens, da Biblioteca Nacional, pela realização de Desassombro, considerado o melhor livro de poesia do ano.


É possível perceber perspectivas mais “democráticas” para a poesia nesse século XXI ou ela ainda vai continuar como um artigo de luxo?

Penso que neste novo século o poema estará onde sempre esteve, no livro, nas revistas, nos recitais, mas também nos portais da internet e assim por diante. Acredito nesta presença, mas considero que ela não representa exatamente democratização ou ampliação do público leitor.
Mesmo em países sem os nossos índices imorais de analfabetismo, e nos quais os bens culturais estão de fato acessíveis, a poesia é um artigo de pouca circulação. Afinal, como seria possível o trânsito largo de uma linguagem que experimenta, arrisca, rompe com hábitos, exige tempo, atenção, disponibilidade intelectual e existencial? É claro que o investimento maciço em educação, pesquisa, produção cultural e formação de público pode exercer um papel positivo, aumentando em muito a rala presença da poesia no campo da cultura. Mas ela estará sempre aquém do cinema ou da música, por exemplo.
No entanto, o fato de a poesia ser um artigo para poucos não a torna, penso eu, um “artigo de luxo”. Ela é um bem de produção, digamos, artesanal. Embora circule em meios industrializados, como livros e jornais, e agora nos ambientes eletrônicos, o poema é uma atividade de caráter individual. E, mais que isso, se a sua natureza “improdutiva” empurra-a sempre para fora da indústria, o seu imenso gasto não pode considerado supérfluo, pois pertence antes à ordem do erotismo. A idéia de luxo não combina com a naturezada poesia, que trabalho sempre com o essencial. Todo poema é, ao contrário, um voto de pobreza. E isto nem tem a ver com algum tipo de elevação espiritual ou salvação da alma. A aspiração do poema é exatamente impor-se na sociedade do consumo e do luxo como um objeto essencial.
De qualquer modo, estamos longe do quadro - por tantos vaticinado - de fim ou esgotamento da lírica. Ao contrário, ela se a cada dia como espaço viável de inteligência, subjetividade e criação num mundo largamente dominado pela imagem, pela mídia e pela circulação tão avassaladora quanto acrítica de mercadorias.

Você é um poeta da geração anos 90. E isso tem sido um traço distintivo em relação à produção poética dos aos 70/80. Em que a nova poesia mudou, marcando seu caráter e inserção diferenciada no território das Letras?

Quanto à possível caracterização da poesia que se escreve hoje no Brasil, há um ponto pacífico: estamos diante de uma extraordinária heterogeneidade. Na convivência de linhagens está em cena, sobretudo, uma contemporaneidade de “formas”. Assim, o verso livre convive com o metro; o soneto com a página neoconcretista; o coloquial com o registro culto e elevado, assim por diante. Esta atualização de formas várias mostra o quanto os poetas atuais não optaram por uma linhagem canônica, inquestionável, com a qual ingressariam sem riscos e pré-aprovados no quadro da poesia brasileira.
Assim, um poeta como Paulo Henriques Britto lança mão do soneto para nele fazer caber o prosaico, a narração, o humour, reavaliando desse modo a relação entre forma e conteúdo. Noutro caminho, Antonio Cicero traz os temas caros à tradição lírica ocidental para o chão comum do urbano.
Quanto à permanência de uma via experimentalista, um exemplo acabado é a poesia de Arnaldo Antunes, cuja associação pop de linguagens, técnicas e conteúdos garante aos textos uma feição contemporânea mas que deixa ver suas dívidas para com as vanguardas históricas. Outra via de reflexão metalingüística pode ser vista na poesia de Alberto Pucheu, ocupado com a dissolução das fronteiras entre a poesia e a prosa.
Se se pode observar na produção de muitos poetas atuais uma presença marcante do que seria uma linhagem cabralina, é preciso contrapor a este ideal construtivista vozes como a de Manuel de Barros, voltadas para uma escrita em que a imagem vem ao primeiro plano numa extrema liberdade de composição.
E ainda, de fato, houve um retorno de formas, temas e vocabulário nobres. Aparentemente, estaríamos assistindo, a partir dos anos 80, ao enterro definitivo da poesia marginal dos anos 70 e de seu processo de desintelectualização da poesia. Mas o vivo interesse por poetas como Francisco Alvim, Paulo Leminski, Ana Cristina César e Waly Salomão faz ver uma tensão entre o que se poderia considerar um “retrocesso” e uma constante valorização de procedimentos formais e alguma orientação ideológica que na poesia destes autores, bastante diferentes entre si, fazem soar um arranjo múltiplo e nada vetusto que mistura arte, vida, lixo cultural, revolução de costumes, “alto” (trazido ao solo comum das coisas prosaicas) e “baixo” (elevado à condição excelente de signo dotado de valor estético e existencial). Penso que há alternativas, ou melhor, sínteses entre o que aqui é busca de uma intensidade existencial marcada pelo presente e aquele rigor construtivo pós-cabralino. Um exemplo seria a poesia minimalista e bem tramada de Cláudia Roquette-Pinto.
Você sabe que virou quase um lugar comum - resultante da preguiça e da má vontade, mães do preconceito - a acusação de que na poesia atual falta “ruptura”, entendida como o imperativo de “fazer o novo”. Poder-se-ia alegar, como resposta a isso, que a não-ruptura seria, sim, uma poderosa quebra como um valor entronizado originalmente pelas vanguardas das primeiras décadas do século XX. Tal afirmação não seria uma inverdade, mas soaria algo cabotina e, sobretudo, como uma maneira ainda insistir em não escapar de certo círculo de exigências modernistas. Ora, a ruptura não existe como atitude isolada, a priori. Ela só faz sentido em face da opressão, da interdição. Hoje, diante do acervo da poesia brasileira e mesmo universal, os poetas sentem-se beneficiados; têm liberdade de fazer uso de quaisquer formas, numa relação positiva, num exercício de discernimento que implica a aceitação de certos paradigmas e a negação de outros, mas sem que uma verdade canônica estabeleça o certo e o errado para todos.

Sinto sua poesia como uma escultura, uma construção bela e sustantiva de jogos de espaços, luz, contrastes. É hoje a visualidade espacial (ou mesmo até “geo-política”) um critério de valor?

Adoraria fazer em poesia o que Franz Weissmann faz em escultura. Ou melhor, gostaria de trazer para o verso algo daquela contrução, daquela operaçao de dobra e corte que constróe com o mínimo o espaço e o vazio. A forma sempre me seduziu. Nunca me interessei muito pela abstração do pensamento, nunca tive aptidão, por exemplo, para a filosofia. Interessou-me desde sempre a pintura, a arquitetura, a fotografia. Digo tudo isto porque talvez isto tudo explique de algum modo esta presença do que você chama de “visualidade espacial”. Mas penso que isto não pode ser visto como um “critério de valor”, pois não é uma coisa boa em si. Meu interesse por aquilo que posso ver, ao contrário, por vezes me parece uma limitação enorme. E se algumas vezes procurei, sem muito sucesso, diminuir esta insuficiência, a certa altura imaginei que talvez devesse procurar, pelo contrário, extrair desta minha limitação alguma coisa positiva. E, de fato, acabei por tentar explorar as possibilidades da minha estreiteza, o que, no fim das contas, talvez tenha apenas tornado mais estreito o alcance reflexivo do que escrevo. Mas, de qualquer modo, adquiri consciência de que deveria converter em projeto estético a minha particular sensibilidade quando ia escrevendo os poemas de Martelo (1997), que é em larga medida um livro marcado pela busca de um mundo apreendido como matéria, como corporeidade. Há, por exemplo, uma pequena série de poemas chamados “Figura”, “Figura com mulher”, “Figura II” e “Figura III” que dialogam diretamente com a pintura de Matisse, que é a referência plástica mais forte e decisiva da minha vida. Descobri a arte moderna com o “Grand nu couché/Nu rose”. Eu era uma menino sem livros em casa. Aos poucos, fui comprando os romances de Alencar e dos outros românticos. Tinha como única referência poética o livro Eu, de Augusto dos Anjos. A arte, para mim, era uma coisa do passado. Um belo dia, o menino deu de cara com a reprodução da tela de Matisse. Pronto! Foi um choque e um deslumbramento. Conheci a pintura moderna antes da literatura moderna. Eu desenhava bem e com muita desenvoltura. Depois, cheguei a pintar e a fazer colagens. Podia passar, e passava, horas e horas recortando papéis, figuras, sem nenhuma necessidade de leitura, sem nenhum pensamento que não a avaliação do quanto uma forma e uma cor podiam ser belas. A beleza, que considero a mais alta qualidade que a arte pode alcançar, para mim está diretamente ligada à visibilidade. Para mim, a beleza, que é uma abstração total, é algo que reconhecemos sobretudo naquilo que vemos. Em “Figura com mulher” digo que a “odalisca” (referência direta a um dos motivos mais recorrentes da obra matissiana) “não sonha” e “vive a delícia – cor/ e perfume – de estar totalmente/ neste mundo.” A visibilidade é, para mim, uma afirmação da vida, do viver, do mundo, da existência como absoluta presença. Num outro poema de Martelo, ao falar de Deus, imagino que um navio talvez possa ser “um pedaço de um pedaço/ de um pedaço do seu nariz (…)” Só sei pensar as coisas mais abstratas e vagas como matéria, corpo, visibilidade. Penso com o olho. O olho é minha sensibilidade. E creio mesmo que a poesia que escrevo reflete isso. Tudo o que escrevo aspira ser como aquele grande nu de Matisse, absolutamente aqui, absolutamente agora, aberto à vida e ao olhar.

Quais foram suas maiores referências literárias, se é que ainda faz algum sentido falar nisso...

Acho que faz muito sentido. A poesia brasileira nunca viveu a “angústia da influência”. Em alguns momentos a necessidade de partir do zero criou esta falsa perspectiva. Mas o meu palpite é que esta tese da angústia não vale para a cultura brasileira, onde talvez a afirmação da personalidade e da individualidade não seja um imperativo, como nas culturas anglo-saxônicas.
Sem dúvida, o poeta que mais me ensinou o ofício da poesia foi Drummond. Quando aluno de graduação e de mestrado em Letras, li e estudei em várias oportunidades a sua poesia, orientado pela extraordinária professora e ensaísta Marlene de Castro Correia. A manipulação dos ritmos, das repetições, as alternâncias de tom, a variação de registros, as múltiplas vozes e outros recursos utilizados extensamente e magistralmente por Drummond eram vistos e pensados, pesados em relação com a reflexão que os poemas propunham. Este aspecto do aprendizado formal foi fundamental para mim, que sou, por gosto, um poeta-trabalhador.
Mas se pudesse eleger uma poesia como padrão, vislumbrada timidamente numa espécie de utopia íntima, esta seria a de Manuel Bandeira, pois penso que ela congrega todas as qualidades que me atraem neste ou naquele poeta, neste ou naquele pintor, pensando aqui, e sempre, em Matisse. Mas também fui, e sou, um leitor da poesia portuguesa. Evidentemente, tudo começou com o incontornável Fernando Pessoa. Posteriormente, aconteceu-me a poesia de Jorge de Sena, que li com bastante entusiasmo, e por volta de 1985, eu e mais dois amigos adoecemos de Os passos em volta, de Herberto Helder. Digo adoecemos porque o livro se converteu numa fixação para os três, algo patológico! Quando não estávamos em casa lendo o livro, estávamos juntos, cada qual com o seu exemplar. Então, íamos para algum bar ou para a casa de um de nós e ficávamos madrugada adentro, maravilhados, lendo aqueles textos. Sabíamos de cor passagens enormes. Eu já conhecia alguma coisa de Sophia de Mello Breyner Andresen e Eugénio de Andrade, mas só depois suas poéticas ganhariam a dimensão de forças reveladoras da minha própria escrita. Creio que o mecanismo da influência é mais ou menos esse: descobrimos algo que faz claro aquilo que desejamos secretamente, como uma vereda para chegarmos ao que nos tornamos. Nestes dois poetas, encontrei, sobretudo, a força que nasce da delicadeza e da luz. Já disse em outras oportunidades que a ternura de Eugénio é das coisas mais grandiosas que a poesia já produziu. Toda a sua palavra é de uma luminosidade que nunca cega, pois nasce de uma vivência erótica que afirma o corpo, que o festeja, ele e seus desejos, ele e suas sedes. A palavra é também um corpo na poesia de Eugénio, que convoca cada sílaba com o seu corpo inteiro. A atmosfera erótica eugeniana sempre me excitou, fisicamente mesmo, pouco importando sobre o que falesse. Até porque a poesia, de fato, não fala “sobre” coisas. As coisas é que são invitadas a virem para o poema como testemunhos da existência. A vida é real, sim, sabemos disso porque as coisas o dizem, e o dizem sobretudo, plenamente, nos poemas. Esta asserção das coisas no poema é absoluta, é maravilhosa, estonteante e patética. A poesia de Eugénio mostrou-me isso, assim como a de Sophia, cuja poética, toda a crítica já o disse, procura libertar-se de toda contingência de tempo e espaço, da descontinuidade dos nomes e dos corpos, a fim de fundar na escrita um tempo/lugar no qual tudo se reintegra e volta à unidade perdida. Aparentemente, a escrita de João Cabral seria muito aposta à destes dois poetas. Sophia e João Cabral, porém, não apenas foram amigos, mas admiravam-se como escritores, homenagearam-se em poemas, trocaram livros e dedicatórias. Cabral comentava os poemas da amiga e O livro cigano mostra uma clara influência da escrita cabralina sobre Sophia de Mello Breyner. Também sei que Eugénio é um admirador da poesia do nosso pernambucano e seria possível traçar um quadro de convergências na poesia de ambos. Não pretendo ensaiar aqui um estudo aproximativo, e se sublinho alguma vizinhança fora do âmbito da minha poesia é apenas por uma espécie de vício crítico. Voltando ao círculo restrito que me inclui, penso que estes três poetas orientaram-me para um certo materialismo e para um realismo solar. Como poeta, eu não conseguiria, por temperamento, aproximar-me da poesia desejadamente incômoda de Cabral. Sua materialidade áspera e cortante, sem dúvida esplendorosa, definitivamente não me serviria. Estou mais próximo da delicadeza de Eugénio e Sophia. Mas, nos três, encontrei o rigor construtivo casado à emoção.
Ao invés de “angústia”, experimento, pessoalmente, uma “alegria da influência”. Imagino que não passei ileso pela música de Caetano Veloso, pela voz de minha mãe cantando Maysa, pela arquitetura das casas dos subúrbios do Rio, pelos contos de Cortázar, pela crítica de Roland Barthes, pela pintura de Matisse, de Volpi, pela escrita de Clarice Lispector etc. Mais que isso, gosto de pensar que o estilo – uma expressão radicalmente pessoal – por mais consolidado, nunca se fecha ao trânsito das influências.

Qual o seu débito para com as vanguardas dos anos 50/60?

Aparentemente, o débito é pouco. Mas, em poesia, o pouco é muito. Acho admirável que o Concretismo tenha dado à poesia brasileira um embasamento teórico, reivindicando para ela uma sensibilidade contemporânea. A dimensão crítico-teórica do movimento foi capaz de levar à uma reavaliação dos principais conceitos das poéticas não concretistas e, de fato, pouco importa que a tão polêmica proposição da “morte do verso” tenha se restringido aos limites da própria vanguarda concretista. Formulada menos como verdade histórica que como provocação estético-ideológica, a afirmativa propunha desdobramentos fundamentais, como o desaparecimento do autor enquanto entidade metafísica e instância nuclear da escrita e a conseqüente valorização dos aspectos construtivos do poema e da racionalidade projetiva como cernes da atividade poética. Penso que que foi extremamente útil para as geracões seguintes as propostas de ruptura com estruturas consideradas insubstituíveis, essenciais, a partir de uma consciência crítica – em sintonia com os avanços tecnológicos, estéticos e filosóficos que marcaram o pós-guerra, mais fortemente os anos 50 – que, sem dúvida, mobilizou uma enorme energia criadora, em diálogo com as artes plásticas, a música popular, os meios de comunicação de massa e o anticonvencionalismo das novas ideologias comportamentais.
No entanto, minha sensibilidade está mais de acordo com o encaminhamento neoconcreto, que além de se posicionar contrariamente à exacerbação racionalista do concretismo, pretendia-se uma reinterpretação do neoplasticismo, do construtivismo e dos movimentos afins, de modo que fossem avaliadas suas conquistas expressivas com a prevalência da obra sobre a teoria. Do mesmo modo, defendia-se um lugar privilegiado para a intuição criadora, em contraponto com o objetivismo matemático ou científico.
O neoconcretismo foi muito mais uma corrente das artes plásticas - apesar do diálogo intenso com a poesia - mas seu encaminhamento em direção a uma criação mais próxima do que seria um corpo a corpo com a obra e sua abordagem mais direta, ficando em segundo plano o racionalismo do projeto e da teoria, seriam os princípios, em grande medida, adotados pelos movimentos de poesia de vanguarda que procuraram marcar suas diferenças com relação ao concretismo.
Mas, pessoalmente, não fui um leitor entusiasmado nem dos concretistas nem da poesia-praxis de Mário Chamie. Dos anos 60, li mais tarde (afinal, nasci em 1961)e destaco os nomes de Armando Freitas Filho e Orides Fontela.
Repito que não tenho débitos direto com as vanguardas dos anos 50/60. Mas elas são peças fundamentais de um quadro histórico do qual faço parte, deram sustentação e ele, fomentaram a reflexão e, ainda que muitas vezes se tenham fechado em si mesmas, abriram muitos caminhos. Gosto de ter esta dívida indireta. Mas também acrescento que me agrada escrever num tempo de “desamparo”, quando não há qualquer vanguarda que garanta alguma estabilidade estético-ideológica ou que, num outro sentido, exerça o papel coercitivo de padrão.

A poesia hoje parece nascer pronta, já clássica - no bom sentido da palavra - . Você concorda com isso, ou seria só impressão de uma crítica e leitora de outros tempos mais tempestuosos?

Não sei se entendi exatamente a sua pergunta. Mas posso diser que não há lugar, hoje, para a poesia que “flerta”de modo irresponsável ou ingênuo com o efêmero. A palavras de Drummond, que se disse cansado de ser moderno e aspirando a ser eterno, de certo modo traduziu um espírito, um anseio, e ecoam na consciência dos poetas de hoje. Não há mais razão para que a poesia se contente com ser “o menos” da forma que se desgastará em breve, iludida com a possibilidade de intervir no real por meio de uma aderência que se desejasse revolucionária ou reformadora. A poesia deve mesmo ter como seu horizonte o máximo de si mesma. A resposta ao tempo presente se dá numa reação e não numa aceitação dos maquinismos de pulverização dos valores e das formas, e o poema tem a capacidade de ser um espaço de reação sem precisar ser conservador. Até porque o conservadorismo é um “ismo”. A “eternidade” tem a ver com o mergulho absoluto no tempo presente (outra vez Drummond) para engendrar uma linguagem forte o suficiente para resistir à dileceração das formas, dos seres e das coisas no fluxo temporal. E mais: uma obra é um “clássico”quando instala em si uma espécie de eterno prsente. Ela não se limita ao passado e nem se projeta como algo que só terá valornum hipotético futuro.
Não estou certo de que os poemas hoje nasçam “clássicos”, mas talvez tenham sim este desejo, que tem a ver com a vontade de responder perguntas, atualizar saberes e surpreender o leitor.
Mais também me pergunto: quais foram os outros tempos “mais tempestuosos”? Ora, quando havia inimigos explícitos? Quando havia utopias descrevíveis? Penso que nenhum tempo terá sido mais tempestuoso que o de agora (“o agora” é sempre o tempo da maior tempestade?). Por isso mesmo a poesia não se alimenta mais do projeto de transformar a realidade se arriscando a ser mais um signo girando vazio entre tantos outros. O poeta tomou consciência de que a poesia deve ser o que tem de ser: um objeto máximo da linguagem. E não há aí nenhuma desistência de um projeto utópico. A utopia é preservar espaços de inteligência, de sensibilidade, de subjetividade; espaços onde ainda há a festa, a beleza, a alegria, o canto, a dor. A poesia quer ser a alma da cidade.

Você vem sendo um dedicado articulador entre Portugal e Brasil em matéria de poetas e poesia. Como anda esse parentesco hoje em dia? A poesia jovem portuguesa rima com a nossa? Pode-se falar em uma comunidade da lingua portuguesa em matéria de produção literária e quais seriam as perspectivas reais de um mercado comum de poesia entre nós?

Embora eu seja professor de literatura brasileira, já há algum tempo venho estudando e trabalhando sobre a poesia portuguesa de alguns poucos autores, o que resultou em ensaios e outros estudos publicados em revistas daqui e de Portugal. Mas isto que você chama de “articulação” se intensificou com um convite da revista de poesia Relâmpago, que é excepcional, para publicar poemas inéditos num número todo dedicado à produção brasileira atual (ou outros poetas foram Armando Freitas Filho, Antonio Cicero, Paulo Henriques Brito, Waly Salomão e Leonardo Fróes). Depois disso, um dos editores da revista, o poeta Gastão Cruz, ineteressou-se pela minha poesia e pediu que lhe enviasse os originais de Desassombro. Ele gostou do livro e pediu minha autorização para mostrá-lo aos responsáveis pelas Quasi Edições, pois já haviam publicado Manoel de Barros, Gustavo Arruda, e preparavam a edição da poesia completa de Ferreira Gullar. Os editores decidiram-se pela publicação e, simultaneamente, fui convidado para participar da I Bienal Internacional de Poesia de Faro, no Algarve. Fiz o lançamento do livro em Lisboa, na Casa Fernando Pessoa, e tive a oportunidade de conhecer os dois maiores poetas portugueses vivos, meus queridos Eugénio de Andrade e Sophia de Melo Breyner Andresen. Foi uma experiência extraordinária.
Os laços foram se estreitanto e ano passado participei de outro encontro intenacional de poetas, desta vez na Ilha da Madeira. Em Lisboa, fiz a apresentação do livro de Antonio Cicero, Guardar, também editado pelas Quasi. Para fechar bem o ano, consegui trazer os dois editores para um debate no Museu Histórico Nacional sobre as relações editoriais Brasil-Portugal. Agora estou preparando uma antologia com letras do Caetano que também sairá por aquela editora. Mas não parará por aí, virão ainda Adriana Calcanhotto, Armando Freitas Filho, Waly Salomão e Ana Cristina Cesar.
Penso que há uma rima, sim, entre as poesias portuguesa e brasileira. Mas uma rima toante: menos perceptível, onde a semelhança não é total. Penso que o aprendizado de ambas as partes pode estar mais na diferença, pois a coincidência não poderia ser maior: a língua. O século XX é chamado “o século de ouro” da poesia portuguesa. Acredito que o mesmo poderia ser dito da brasileira. E se dois países fizeram grande poesia numa mesma (outra) língua, seria no mínimo inteligente que se conhecessem melhor para fazerem a poesia do século XXI. O aprendizado seria maravilhoso para ambos.
Falando mais de perto sobre a divulgação da poesia brasileira em Portugal e vice-versa, tendo em vista o meu parco conhecimento técnico do assunto: de ambas as partes, o desconhecimento é enorme. De um modo geral, no Brasil, a poesia portuguesa não aparece, fica restrita às universidades, que, deve ser dito, trabalham intensamente a poesia e a prosa portuguesas. Todo o tempo são defendidas teses de mestrado e doutorado sobre poetas e prosadores portuguesas, e há muitos anos professores e autores vêm ao Brasil. Portanto, é preciso fazer essa distinção em relação ao quadro geral, pois pode parecer que há um vazio absoluto, o que não é verdade.
Mas fora desse circuito universitário a situação é mesmo diferente, pois praticamente não existem livros nas livrarias e as pessoas conhecem pouco ou nada do que se escreve em Portugal. Há uns ano atrás, publicou-se uma antologia de Eugénio. Mais recentemente, uma antologia do Herberto Helder. Conhece-se Camões e Pessoa, evidentemente, mas quanto à poesia portuguesa mais contemporânea, há um desconhecimento geral de grandes nomes como Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz, António Franco Alexandre, Manuel Gusmão e outros. É claro que, mais uma vez, é preciso fazer um parêntesis, relativamente à universidade, onde é claro que há trabalhos e teses de doutorado sobre esses autores. Mas, fora das faculdades de letras, os livros não chegam às livrarias ou se restringem àquelas poucas especializadas, como a Livraria Portugal ou a Camões, que atendem a um círculo muito restrito (mas também registro, com alegria, que a Travessa tem posto títulos portugueses em sua pauta de importação). Além disso, os livros são caríssimos. Em Lisboa, percebi que há mais títulos de autores brasileiros nas prateleiras do que portugueses nas livrarias do Rio ou São Paulo. Claro que são os grandes clássicos, como Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, e não os poetas contemporâneos e actuais. O Gullar é praticamente desconhecido. Está para sair pelas Quasi Edições a sua obra completa, que finalmente virá acabar com este vazio. Mas não é o interesse dos leitores que vai alterar a situação.
Para além da boa vontade e da curiosidade dos leitores, seria necessário um grande esforço, de largo alcance, pois esta é efectivamente uma questão política. Teriam de estar envolvidos ministérios, como os da educação, da cultura, e outros ligados à economia e à exportação/importação, pois o livro tem de de ser tratado como um produto especial, isto é, não pode ser hipertaxado, do modo como ele chega ao Brasil ou a Portugal, a um preço exorbitante. Tem de ser pensada, em conjunto, uma política de edição, distribuição e divulgação. Há uns dois ou três anos atrás, talvez mais, quando Portugal foi o país homenageado da Bienal do Livro do Rio de Janeiro, pensou-se que ali seria um grande momento de divulgação e que a partir de então a aliança estaria consolidada. Absolutamente isso não aconteceu e poucos passos foram dados. É evidente que os editores portugueses têm de vir aqui, ao Brasil, e os editores brasileiros têm de ir a Portugal, têm de criar conjuntamente mecanismos que facilitem o fluxo dos livros e a ampliação do público; não podem esperar infinitamente por decisões governamentais, ao contrário, devem exigi-las, pressionar todas as instâncias envolvidas de algum modo com a produção e a veiculação do livro. É preciso comprometer muita gente. Além das próprias editoras, a imprensa tem de dar atenção. São vários níveis que seriam necessários articular.
Um bom exemplo do que se pode fazer com algum apoio instituconal é a Cátedra Jorge de Sena, da qual faço parte, criada no âmbito da Faculdade de Letras da UFRJ em 1999, na qual desenvolvemos trabalhos de divulgação e pesquisa das literaturas de língua portuguesa (Brasil, Portugal e África). Desde seu início, ela vem congregando por meio de cursos, palestras, seminários, eventos e publicações um número expressivo de estudantes, professores, pesquisadores e escritores de diversos países. O sucesso de tal iniciativa deve-se, sobretudo, à Fundação Calouste Gulbenkian e ao Instituto Camões, as mais importantes instituições de arte e cultura de Portugal. Ambas, dentre outras formas de apoio, financiam a vinda de professores visitantes, quase sempre oriundos de Portugal, França, Inglaterra, Moçambique e Angola, que permanecem no Rio de Janeiro parte dos meses de agosto e setembro, quando ministram cursos intensivos em de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado), além de participarem de palestras e debates. Graças a estes mesmos órgãos, a Cátedra Jorge de Sena publica anualmente a revista Metamorfoses, da qual sou um dos editores. Isto tudo é muito bom, claro, mas pouco rompe com os limites da Universidade.
Concluindo, devo dizer que a minha “articulação” não é a única. A recente transformação da Inimigo Rumor, da editora 7 Letras, em revista luso-brasileira é um acontecimento excelente. Penso, no entanto, que tais iniciativas são sempre particulares e não são capazes de tecer redes duradouras. Tudo pode se esgarçar a qualquer momento. Só haverá, de fato, trânsito denso entre as literaturas brasileira e portuguesa se se partir para um universo mais amplo, para ações político-institucionais que apóiem diálogos como os que já se estabeleceram e crie outras redes de apoio, pesquisa, divulgação, edição etc. É preciso ter vontade de fazer e dispender algum dinheiro. A Biblioteca Nacional poderia ter um programa voltada para isso.