De monstros e monstruosidades
Resenha de Antologia, de Adília Lopes, Rio de Janeiro: 7 Letras; São Paulo: Cosac & Naify, 2002.


A poesia da portuguesa Adília Lopes decerto estranhará ao leitor brasileiro que nada sabe a respeito da escritora e de sua obra, constituída ao longo dos últimos dezessete anos: sua linguagem parecerá por demais banal e próxima da narrativa, embora os poemas se construam em versos (o posfácio de Flora Süssekind é leitura obrigatória para o entendimento do jogo entre a esfera lírica e a narração). Mas também é provável que o mesmo leitor reconheça nestes efeitos “antipoéticos” algo do nosso modernismo, da escrita dos poetas marginais dos anos 70 e da poesia de Francisco Alvim.

O universo absolutamente trivial dos versos guarda qualquer coisa de artificial, de antinatural: há sempre uma ordem estabelecida – moral, estética, comportamental – que soa “estranha”. Disposições e arranjos sociais mostram-se em precário equilíbrio, e quando se desagregam substancialmente logo tudo se reorganiza e restaura, pouco importando a que preço: “Minha avó e minha mãe/ perdi-as de vista num grande armazém/ a fazer compras de Natal/ hoje trabalho eu mesma para o armazém/ que por sua vez tem tomado conta de mim/ uma avó e uma mãe foram-me/ entretanto devolvidas/ mas não eram bem as minhas/ ficámos porém umas com as outras/ para não arranjar complicações” (p. 63).

A banalidade e o absurdo equivalem-se numa espécie de esvaziamento entre o cínico e o sádico. Indiferenciam-se o bem, o mal, o belo, o feio, o afeto, a zombaria, o angelical, o diabólico, que descem ao comum das relações diárias e jamais se expandem à escala de algum valor capaz de salvar o humano de sua condição mais chã. O resultado é uma espécie de transformação do humano em animal e, nesta mesma esteira, do animal em humano: “Os meus gatos/ gostam de brincar/ com as minhas baratas” (p. 71).

O grotesco, na poesia de Adília Lopes, recusa o fantástico: o real é a grade perversa que os poemas nos impõem, da qual não nos libertamos nem na forma nem no conteúdo. E aqui é possível aproximar a poesia de Adília da brutalidade antiliterária da Clarice Lispector das crônicas e dos contos de Onde estivestes de noite, bem como do Nelson Rodrigues mais realista, seja o do teatro ou o das narrativas. Igualmente, os poemas adilianos, ainda que fundidos à realidade mais prosaica, mostram um distanciamento com relação a ela, que assim perde um tanto de sua consistência e o que antes parecia estável e familiar ressurge em seu aspecto ridículo, mecânico e disparatado. Tal posição cria uma atmosfera perversa e é responsável por um dos traços mais marcantes da poesia de Adília: o humour. De fato, chega mesmo a haver comicidade nos poemas, nos quais defrontamo-nos com o patético: “Com os remédios/ engordo 30 Kg/ o carteiro pergunta-me/ para quando/ é o menino/ nos transportes públicos/ as pessoas levantam-se/ para me dar o lugar/ sento-me sempre (…)” (p. 181).

Mas se a poesia de Adília parece querer romper com a violência de convenções sociais que aspiram à continuidade, o risco deste gesto está numa possível assimilação da própria poesia, ou seja, na sua fusão com as normas que quer denunciar. Nas suas encenações, os poemas nem sempre têm força para fraturar ou infringir os códigos a que se opõem, limitando-se a linguagem a ser mais uma forma a se mover dentro deles. Lembro de Roland Barthes em sua célebre aula inaugural no Colégio de França, na qual sublinha o caráter opressor da língua, apontando o quanto a ordem sintática e outras necessidades formais impõem uma relação de alienação: falar sobre alguma coisa é sempre um ato de sujeição. Some-se ao caráter coercitivo da língua o fato de ela se constituir por signos reconhecíveis graças à sua repetição. Barthes conclui que todo signo é seguidor, gregário, e que em cada qual dorme um monstro: o estereótipo. A saída possível, segundo ele, estaria na trapaça com a língua: a literatura. Nela, ouviríamos a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente. Concluímos, portanto, que toda poesia implica manobra e logro da língua, e que a destruição de preceitos poéticos requer força extrema e total radicalidade de linguagem, pois exige a ultrapassagem da fala comum e dos próprios procedimentos cristalizados pela tradição lírica.

Os que abraçam incondicionalmente a poesia de Adília Lopes apontarão para a banalidade de sua escrita como uma encenação, pontuada aqui e ali por fissuras, desvios, referências, quebras de padrões etc. Mas penso que tudo isto se dá por demais no nível do tema ou da armação visível dos lances narrativos, limitando-se às “modalidades” (trocadilhos, repetições, paradoxos e afins) sem que haja uma descida à estrutura, à sintaxe, às formas de composição: ao coração da ideologia. Sabemos que não basta apontar, citar, denunciar, rir, para que se abalem os monstros sociais, sempre erguidos pela/na língua. Ora, a poeta parece ter visto na tradição lírica apenas mais uma convenção contra a qual se bater, como se a poesia fosse um discurso embelezado por imagens, ritmos e conteúdos. Engano total. E se aquele que se limita a tal ornamentação não faz poesia, quem a nega nem por isso está a fazê-la. Adília está. A questão que a Antologia nos põe é: até que ponto esta poesia pode ir em seu projeto sem acabar por se reduzir à mera obediência às ordens da língua e aos seus contratos sociais?