Recortes da paisagem portuária
Resenha de Cais, de Alberto Martins (São Paulo: Editora 34, 2002),


Se uma primeira leitura é suficiente para que se defina este segundo livro de Alberto Martins como sendo uma reunião de poemas sobre o mar, o leitor mais exigente, logo a seguir, é tomado por uma desconfiança e, já incitado para uma segunda leitura, mais atenta, pergunta-se: que “tipo” de mar? Então, constata que os versos expõem restos de praia, paisagens soltas, fragmentos, naturezas-mortas; que os poemas são, sobretudo, marinhas urbanas, que se detêm menos no mar alto e em suas profundezas que na beira-mar, na paisagem do porto, com seus navios, guindastes, bares, homens, mercadorias.

Ao invés de águas verdes e areias límpidas, deparamo-nos no livro de Alberto Martins com a sórdida paisagem portuária de Santos: “Triste cidade litorânea!/ meus olhos mal te distinguem/ do mar da terra da lama.” (p. 53). Os poemas, muito mais colados à movimentação da vida no cais que ao ritmo ininterrupto das ondas, emparelham-se com o peso das mercadorias, a ferrugem dos cascos dos navios e toda sorte de matéria gasta, onde reencontrarão o peso, a ferrugem, a velhice, a morte – tempo e tragédia – do que é humano.

As breves marinhas de Martins, há que se ressaltar, não alcançam sua contemporaneidade com a simples nomeação do que “suja” a paisagem. Ao invés de aderir à generalidade do moderno como ruína, os poemas movem-se entre escombros de tempo e espaço com uma acuidade que não despreza a delicadeza e a simplicidade. O poeta sabe recortar e colar. E, mais que isso, seus objetos são animados: possuem alma. Se Cais não se propõe a elevação de seres e coisas a uma qualquer transcendência, simultaneamente não se limita a constatar a miséria, a morte e o vazio. Ao contrário, numa aproximação plena de sutilezas, reencontra a alma na lama de uma paisagem aparentemente morta. Nessa escrita do olhar, o olho, não há duvida, é sensível, inteligente. Daí, as imagens não se esgotarem nos limites estreitos do postal ou do retrato, embora Martins também lance mão de tal economia, e dão a ver os rituais do nascimento, da agonia, do fim, bem como os mecanismos precários da vida.

Formas, imagens, ritmos, construções, tudo obedece ao menor grau de dispêndio. Diante da desordem, da paisagem perdulária, o poeta recorta o que chamaríamos de mínimo, empreendendo uma investigação poética das formas, texturas, cores, luzes e materialidades em suas possíveis motivações estéticas. Lê-se: “Mas como equilibrar numa só linha o mar/ e seu vocábulo// - se um é para os olhos/ outro para a língua? (p.12)” Estamos diante de uma escrita lúcida, interrogativa, que pesa seus limites ante a amplidão de seu principal objeto. Como harmonizar desequilíbrios e desproporções? A certa altura surge a expressão “língua-de-água” (p. 19). Os versos se erguem nesta procura por uma metamorfose capaz de reunir palavra e coisa e fazer do poema um “animal submarino” (p. 12).

Tal vontade de urdir uma fala marinha fica clara, por exemplo, numa espécie de levantamento de testemunhos materiais que museografam a paisagem. Passado e presente olham-se frente a frente, e outros discursos ressurgem, trazidos como despojos pela maré da escrita transmutada em memória. As vozes de antigos viajantes reaparecem: Hans Staden, Thevet, Jean de Léry, o padre José de Anchieta. Simultânea à movimentação de homens, mercadorias, navios, peixes e águas há, portanto, um deslocamento e uma animação de discursos e formas, de nomes e identidades. Sem dúvida, Alberto Martins apresenta-nos um topos específico, o litoral, mas os limites do espaço se ampliam na medida em que este se mostra absolutamente confundido com o tempo.

Em diálogo direto com as cargas que se alçam dependuradas nas xilogravuras que ilustram o livro , os versos de Cais buscam também o equilíbrio, a tensão exata, o transporte ideal para os pesos do sentido e do silêncio.