O mel da máquina
O mel do melhor, de Waly Salomão, reúne poemas e prosa editados em livros e revistas. Em breve nota introdutória, o autor autodenomina-se “réu confesso”, ao assumir seus “parcialismos, arbitrariedades e paradigmas idiossincráticos” na seleção dos textos. Assim, ao invés de discutir critérios, o arranjo ou a eficácia das escolhas da “abelha”, provemos imediatamente do mel.

Na antologia, está presente o experimentalismo do primeiro livro de Waly, Me segura qu’eu vou dar um troço (1971). Sua prosa é vazada numa linguagem em consonância com a irreverência e a rebeldia das artes de vanguarda de então. Cultura de massas e contracultura cruzam-se em arranjos sintáticos fragmentários, excessivos, repetitivos, marcados pela associação de idéias e palavras, motivada tanto pelo significado quanto pela sonoridade. O ritmo é intenso, nervoso. Mesclam-se os discursos político, filosófico, místico-religioso, a radicalidade estética e o registro prosaico, chulo. A certa altura (p.26), lemos: “Sou um camaleão”. E assim são os textos: camaleônicos. As frases mimetizam-se incessantemente, numa flagrante anarquia que assimila oswaldianamente a “contribuição milionária de todos os erros”, conforme FA-TAL (p. 37), onde há uma referência a um jovem com “nenhuma nostorgia”. Os textos incorporam o erro, o desvio, a hesitação: “cada hora tiro um som diferente; espécie de Himalaia Supremo da Cultura Humana: um Corpus Júris Civili qualquer (confirmar depois se Civili se escreve assim ou não)”. Vale a pena comparar tal passagem com os últimos versos de “Carta aberta a John Ashbery” (p. 77): “(…) um deus irrompe afinal para resgatar o/ humano/ fardo.// Corrigindo: o humano fado”. Em Algaravias (1996), o poeta não evitará a retificação e, sobretudo, o erro e a correção já não se limitam a uma irônica brincadeira com a normatividade ortográfica ou gramatical, convertendo-se, ao contrário, num jogo muito mais expressivo, numa ampla articulação de sentidos. Recurso semelhante ocorrera em ‘Fábrica do poema” (também de Algaravias), onde a rasura simbólica do termo “racalcado” (“expressão/ por demais definida”) amplia pelo vazio o campo de significação das imagens.

Da lendária revista tropicalista Navilouca, um texto em prosa poética delirante - “Na esfera da produção de si-mesmo” – revela o máximo desdobramento do sujeito, lembrando mesmo a dissolução da identidade tão marcante em Fernando Pessoa ele-mesmo e em Álvaro de Campos: “Tenho fome de me tornar em tudo que não sou tenho fome de fiction ficciones fictionários tenho fome das fricções de ser contra ser tudo que não sou ser de encontro a outro ser tenho fome do abraço de me tornar o outro em tudo que não sou me tornar o outro em tudo me tornar o outro a outra doutro doutra em tudo em tudo que não sou me tornar o outro (…)”. Tal produção de si-mesmo confunde-se, na verdade, com a desconstrução do sujeito, levada a cabo por um maquinismo ininterrupto, irrefreável. Na máquina do texto, o ritmo da fabricação das muitas identidades reflete-se, conseqüentemente, na composição dos versos, que poderia ser assim definida: “todas as coisas/ perdem as vírgulas que as separam/ explode-implode um vagão lotado de conectivos” (p. 69).

Gigolô de bibelôs (1983) está pouco representado. O livro, composto por letras de música, alguma prosa e poemas, revela já em seu princípio organizativo a fluidez de fronteiras entre gêneros que preside a fatura dos textos. Perdeu-se, na rala incorporação a O mel do melhor, esta dimensão. Além disso, valeria a pena trazer ao leitor a continuidade dos aspectos mais marcantes do livro anterior acrescidos de uma incorporação bastante pessoal dos princípios da poesia concreta, marcante na exploração do aspecto gráfico-visual e das possibilidades sonoras da escrita.

Do livro seguinte, Armarinho de miudezas (1993) há também muito pouco, pendendo-se, assim, a oportunidade de mostrar o poeta exercitando-se numa série de breves apreciações críticas, livres e líricas da cultura brasileira, avaliada do ponto de vista de uma arte e de uma vivência que chamaríamos de experimentais.

As lacunas anteriores justificam-se, no entanto, pela maior presença dos poemas – seis ao todo – de Algaravias, 1996 (“Prêmio Jabuti de Poesia” e “Prêmio Alphonsus de Guimarães da Fundação Biblioteca Nacional”), sem dúvida, o ponto de maior equilíbrio da criação de Waly. Os poemas exibem sua liberdade sem alardes. Já não há o apelo aos recursos gráficos, nem a intensidade e a velocidade da máquina camaleônica abdica da sintaxe na elocução, agora mais nítida e concentrada em si mesma. Encontraremos, ainda, versos como “Todas as coisas íntegras dilaceram-se/ ou são dilaceradas.” (p.63); ou: “Viver em mudança” (idem). A constante fragmentação das coisas, do sujeito e da própria linguagem, depara-se, porém, com uma poética cuja força algo centrípeta mantém unidos os estilhaços que recolhe. “Domingo de Ramos”, “Poema jet-lagged” e “Fábrica do poema” são exemplos do melhor Waly.

Os poemas de Lábia (1998) e Tarifa de embarque (2000) confirmam o maquinismo, a viagem e a metamorfose como marcas salomônicas. A notação frenética, veloz, os versos alternadamente estilhaçados e cerrados, mas sempre tortuosos, agitados, sustentam uma poética definitivamente barroca em seus volteios, volutas e sensualidade. Uma poética violenta, que, antibandeirianamente, “faz versos como quem morde.” (p. 106). O sujeito poético entrega-se à ilogicidade e ao irracional tanto quanto ao mais preciso projeto. Perfeito e falho, forte e frágil, ele se define: “não sou uno, monolítico, inteiriço” (p. 97). Íntimo dos parangolés de Hélio Oiticica, da alegria solar tropicalista, Waly supera a possível dor da fragmentação e qualquer nostalgia da unidade, entregando-se à potência sensorial da poesia: “Gozar, gozar e gozar/ a exuberância órfica das coisas” (p. 94). É o melhor do mel.

Resenha de O mel do melhor, de Waly Salomão (Rio de Janeiro: Rocco, 2001), publicada com o nome “Marcas salomônicas do poeta”, em Jornal do Brasil, Caderno Idéias, 19/05/2001.