O que em interessa é a luz
Considerado um dos melhores poetas da poesia contemporânea brasileira, Eucanaã Ferraz voltou a publicar entre nós. Desta vez o livro chama-se Rua do Mundo, e foi editado quando da sua vinda a Portugal para estar presente nas Correntes d'Escritas, que decorre anualmente, em Fevereiro, na Póvoa do Varzim. Ler Eucanaã é sempre um desafio, e conversar com ele acentua ainda mais a sedução da inteligência que ele sempre utiliza, acrescentada que fica a outra face, o outro lado da linguagem. Entre avesso e direito da alma portuguesa, num ambíguo jogo de espelhos.

Dentro da sua obra, Rua do Mundo pode ser considerado como um livro de avanço e de vanguarda, a nível da construção poética, ou é mais um livro de aprimoramento de trabalho sobre a sua escrita?

Talvez seja mais um livro de aprimoramento. Não vejo nele um salto, uma ruptura, algo assim. Acredito, porém, que ele radicaliza certos procedimentos. A minha desejada combinação de rigor construtivo, fluidez musical, corte cinemático, economia do mínimo e intensidade lírica está mais bem realizada nesse livro, penso eu.

Está perto do que para si será o ideal?

Está ainda longe do ideal, mas sinto que está num ponto maduro, resolvendo impasses anteriores e anunciando outras e novas orientações. Gosto, por exemplo, dos cortes dos versos, que muitas vezes criam ritmos inesperados, capazes de reforçar certos aspectos, mesmo os temáticos. Há também uma abertura para imagens delirantes, oníricas, perturbadoras, que eu, de algum modo, sempre evitei. Em Rua do Mundo há um imaginário mais livre em acção, contido pelo rigor plástico-musical a que tento submeter cada palavra, cada sílaba.

Escolheu-o para publicar em Portugal por ser o seu último livro de poesia no Brasil ou porque é aquele que mais ama?

Pelos dois motivos. E porque é um livro muito português. Queria que os portugueses o lessem. Queria que se reconhecessem nele. Queria que gostassem dele. O livro é a minha declaração de amor à paisagem portuguesa, às ruas de Lisboa, às gaivotas do Porto, aos autores antigos, aos poetas contemporâneos, ao Álvaro Siza...

Acha que a poesia portuguesa vai tão longe quanto você gostaria?

A poesia portuguesa está viva. Isso é muito. Há divergências, embates, diferenças, exactamente por isso, porque está viva.

Quanto a si, os poetas brasileiros e os poetas portugueses escrevem exactamente na mesma língua?

Se não falamos exactamente a mesma língua, praticamente escrevemos na mesma língua. Por isso, também, a relação entre nós é sempre muito boa. Eu acho mesmo que há traços da poesia portuguesa , que eu tento acompanhar, na poesia brasileira.

Portanto, acha que os livros dos escritores brasileiros e portugueses, se fossem mais editados no Brasil e em Portugal, poderiam ser novas pontes entre os dois países?

Acho que sim... Aliás, ninguém entende bem, pelo menos não se entende perfeitamente, porque é que isso já não acontece há muito tempo e de uma maneira efectiva, singular e intensa.

Para colmatar essa falta, é preciso mais do que a boa vontade de algumas editoras?

Creio que seria necessário uma política governamental. Para que houvesse menos entraves à importação e à exportação dos nossos livros. A nível mesmo dos Ministérios da Cultura e da Educação. Penso que até do Ministério da Economia, porque há problemas que são de facto económicos e que deveriam ser resolvidos. Há diferenças entre a poesia brasileira e a portuguesa que penso serem benéficas para ambos os lados.

As diferenças fazem sempre crescer?

Fazem crescer, sem dúvida. Para mim, por exemplo, ler a poesia portuguesa foi fundamental, decisivo. Ainda hoje, quando tenho alguma atenção da crítica no Brasil, há sempre quem diga: “a sua poesia tem alguma coisa a ver com a poesia portuguesa...”

Há quem veja na sua poesia a influência de Carlos de Oliveira.

Já ouvi muita vezes essa observação. Mas, se fosse listar as minhas influências portuguesas, não o poria a ele. No entanto, percebo que possa existir qualquer coisa dele naquilo que escrevo, a que o Gastão Cruz chama de micro-rigor ou rigor do mínimo. Mas não porque tenha sido um leitor apaixonado do Carlos de Oliveira.

E de que poeta português foi um leitor apaixonado?

Fui um leitor apaixonadíssimo por dois poetas: Eugénio de Andrade e Sofia de Mello Breyner. O Eugénio ainda hoje é um caso de amor poético tão grande, que me emociona muito. Eu acho que de todos os poetas é aquele que eu mais amo!

Se tivesse que escolher um poeta para amar o resto da vida, seria ele?

Bem, nós temos a grande vantagem de amar muitos ao mesmo tempo, não precisamos de escolher um em especial, mas se isso fosse necessário, ah, eu não tenho dúvida alguma, seria o Eugénio!

O chamado amor eterno?

Isso, amor eterno, o último, o único.

Mas, se o Eugénio foi o último e único, qual foi o primeiro?

O primeiro foi Fernando Pessoa, o que no Brasil é muito comum, pois é uma leitura quase que obrigatória para os jovens brasileiros. Na verdade, o amor pelo Pessoa dá-se primeiramente no Brasil e só depois em Portugal, e isso pouca gente sabe.

Ele influenciou de alguma maneira a sua escrita?

Bem, lembro-me de quando começando a escrever, a fazer pastiches de Fernando Pessoa. Nada disso, felizmente, foi publicado, mas acabou por ser aprendizagem, como um exercício de caligrafia. Então, eu caligrafava o Fernando Pessoa.

E em seguida, vem quem?

Em seguida, houve uma leitura que para mim foi quase uma doença: Os passos em volta do Herberto Helder. Eu e os meus amigos sabíamos quase de cor os seus contos. Depois, tive a revelação do Eugénio e da Sofia, em conjugação com autores brasileiros como Drummond, João Cabral, Manuel Bandeira... E na prosa, uma autora como Clarice Lispector. A combinação destes autores fez-me entender onde gostaria de chegar.

E onde gostaria você de chegar?

Gostaria de chegar a esse micro-rigor do Carlos de Oliveira, o mesmo rigor construtivo de um poeta como o João Cabral de Melo Neto. Mas, a mim, só me interessa o rigor se ele estiver animado, aquecido pela emoção, diferentemente de João Cabral.

O controle não lhe interessa?

Pelo contrário, mas a minha escola formal não pertence à família de um poeta como o Herberto: aquele jogo, aquele ritmo não é o meu. Já a potência metafórica e imagética me interessam bastante.

Gosta de escutar esse rigor, esse controle, como quem aprende?

Gosto, desde que esteja no meu tom. E o meu tom está mais próximo dos que aliam a
construção à emoção. Quanto a mim, os exemplos em Portugal, desta junção, são Sofia de Melo Breyner e o Eugénio de Andrade.

Será que o Eugénio usava na poesia esse enorme rigor?

Ah, totalmente! Tem um ostinato rigore, assim corno a Sofia, mais ele do que ela. A construção do Eugénio é mais visível.

Não há casos em que o rigor existe sem ser tão evidentemente exposto? Sem que ele venha à tona?

Mas eu acho que é, precisamente, o caso do Eugénio: tem uma poesia tão rigorosa quanto a do Carlos de Oliveira, embora menos evidente. Mas também gosto que de vez em quando a construção venha à tona, na linhagem de João Cabral e de um certo Drummond.

Por que de um certo Drummond?

Porque o Drummond é um poeta que praticou todas as formas, todas as linguagens, tudo o que é possível que um poeta faça. Fez uma espécie de enciclopédia de formas e possibilidades da poesia. Então, há um certo Drummond que deixa essa construção vir à tona, mesmo antes dos aspectos, digamos, mais conteudísticos.

Não lhe interessa esse lado da escrita?

Também me interessa, e de vez em quando pratico isso. Mas o meu horizonte ideal é uma poesia onde o rigor, a técnica, a construção, o lado mais racional, mais arquitectónico esteja de tal modo conjugado com o estremecimento da alegria, do prazer, da emoção e da dor, que seja uma coisa só.

Tem uma escrita de fruição?

Pelo menos gostaria de ter! Não é uma poesia de negação da poesia, isso não me atrai. Agrada-me ter com ela uma relação amorosa. Cúmplice. Eu diria até uma relação mesmo (sei que vou usar unia palavra comprometedora...) amigável.

Uma relação amigável também com as palavras dos outros poetas?

Claro, em mim há esses grandes amores! Fui um leitor de Pessoa. Fui um leitor seu, e mais recentemente da Fiama. Mas li muito antes e de maneira mais aplicada, por exemplo, a sua poesia. Mais recentemente, também, passei a ler a poesia do Gastão Cruz, que é já uma influência.

Tem um namoro com os poetas portugueses?

Tenho, esse namoro com a poesia portuguesa tem acontecido. Estou sempre atento a ela, é o que eu leio: poesia brasileira e portuguesa.

É um grande leitor de poesia?

Não sei se grande, mas eu sou um leitor de poesia. Só esporadicamente leio prosa, porque tenho preguiça. De certo modo, eu leio para escrever... E a prosa desperta-me menos curiosidade.

Acha que o Camões é um ícone da língua portuguesa?

Não há dúvida, da língua, não só da literatura, um ícone da cultura. É importantíssimo haver alguém como ele na história de um país. Particularmente na história da língua, até porque no caso de Camões ele torna-se também brasileiro, e ter um nome, ter uma obra como a sua torna-nos mais fortes em todos os sentidos. Nós falamos a língua de Camões. Isto lembra o Caetano dizendo “gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões”.

O poeta é um fingidor?

Completamente! O Pessoa chegou à formulação exacta, pois se não fôssemos fingidores, seríamos relatores do nosso dia-a-dia. O poeta, de facto, é um inventor. Mas a equação só fica perfeita quando ele acrescenta os versos: “que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente”... Pois é esse “deveras” que faz com que a equação esteja completa.

Por que o poeta finge o que sente de facto?

Claro, e porque ele sente o que finge de facto. Por isso só aí a equação se torna inteira e complexa, porque não é de mentir, é de fingir que se trata. Ou seja, transformar a existência, o acontecimento, numa coisa que está para além do acontecimento.

É esse o papel do poeta?

Esse é o papel do poeta: dar ao acontecimento o estatuto de linguagem. É estar com a língua, tocar, mexer nela, trapacear com ela, para usar um termo de Roland Barthes. E libertar a própria língua dos seus condicionamentos quotidianos.

E inventar a partir dela?

Para inventar a partir dela, sim, e aí inventa o ser humano.

Reinventa o que já existe?

Precisamente, reinventa o que já existe. Não há como partir do que não há, do que não existe, esse é um limite do humano. E mesmo o que se imagina de alguma maneira existe. De algum modo, é como se não existisse o que não existe. Mesmo a nossa imaginação mais fantástica e louca só é possível a partir de alguma coisa concreta.

Com a sua poesia, quer alcançar o indizível ou dizer o quotidiano?

Prefiro dizer o indizível que o quotidiano me dá, que o quotidiano me sugere. Eu preciso de dizer o indizível, preciso de dizer o que não se disse ainda. Alguém já escreveu que a poesia é quando as palavras se encontram pela primeira vez... então, essa beleza da imagem que acontece, faz pensar: mas eu nunca li isto! E isso emociona-me!

Para si a harmonia é importante?

Completamente. Tenho bastante senso plástico. Mais do que um poeta, sou uma pessoa apegada às formas. Emociono-me com uma cor, com uma textura. Sou capaz de me emocionar com um desenho da sacada de um prédio, com um telhado. Sinto-me muito apegado à plástica do mundo real, no sentido mais físico. Eu entendo essa beleza.

Prefere a beleza no sentido mais físico?

Quero dizer que entendo mais essa beleza física que a beleza, por exemplo, da filosofia, que me é tão abstracta. Então, de certo modo, desenvolvi um gosto pela composição. Mas, voltando à sua pergunta anterior, a harmonia é uma coisa que procuro todo o tempo, mesmo que nos versos eu deseje momentos de ruptura, de quebra.

Não lhe agrada a seqüência melódica constante?

Digamos que não me agrada escrever com uma sequência rítmica ou melódica constante. Tento sempre criar um ritmo e depois quebrá-lo.

Criar fissuras?

Fazer fissuras, exactamente. Na harmonia, agrada-me desafinar, usando aí quase que um conceito da bossa nova. Uma coisa que a poesia de João Cabral me ensinou foi que é preciso acordar o leitor. A palavra não pode embalar o leitor. Não se pode deixar o leitor dormir, não porque a poesia possa ser chata ou cansativa, mas dormir digamos, mentalmente. Dormir existencialmente. Então, é preciso acordar o leitor.

O poeta é aquele que melhor chega aos outros ou aquele que mais dificilmente é entendido?

Vou começar por lhe responder com uma afirmação antipática: penso que alguns poetas gostam da ideia de que fazem uma coisa elitista, para poucos, como um biscoito fino, uma jóia que poucos poderão usar. Alguns poetas prezam isso, embora reclamem que são pouco lidos, que a poesia não é lida, mas no fundo têm apreço por essa ideia.

Lê-se pouco poesia?

Lê-se pouco poesia porque o nível de exigência do poema é muito alto! É preciso disponibilidade de tempo e de alma (mais alma que tempo), que poucos têm desejo de empreender. O investimento que a poesia pede é enorme. Há um descompasso entre essa fabricação da poesia e a sua fruição. Sobretudo a poesia da modernidade.

Está a pensar em que poetas?

Estou pensando em Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Verlaine. Eles iniciaram um processo de fazer poesia que, muito mais do que uma arte que educa e dá prazer, quer fazer de si mesma uma arte de construção da linguagem. Na verdade, o leitor precisa cada vez mais conhecer poesia para gostar de poesia.

Há poesia fora da linguagem?

Penso que são as palavras que fazem a poesia. Nesse sentido talvez esteja próximo de Mallarmé: eu não acho que haja poesia nas coisas, ela é o resultado de um arranjo de palavras, um arranjo da língua.

Então, há apropriação da língua por parte do poeta?

Da língua há, sim, porque a língua é o nosso material, é com ela que trabalhamos. Agora, claro, para cada significante há um significado. Então a poesia vai sempre estar a apontar, também, para alguma coisa que está fora dela: para o mundo, para o espírito, para o afecto, para tudo o que move o indivíduo, para tudo que mobiliza a existência. Mas ela só faz isso porque está trabalhando com a linguagem de modo bastante radical. De modo mais radical do que qualquer outra arte.

Mais do que a música?

Mais do que o cinema, mais do que a arquitectura, mais do que a pintura, e até mais do que a música. A poesia, nesse sentido é mais inteira.

Mas a sua poesia tem um trato intenso com a música.

Tenho... Sou sobretudo um ouvinte de música, na minha formação a música sempre andou a par e passo com a poesia. Aliás, eu devo tanto aos poetas quanto aos compositores, aos pintores, aos arquitectos. Interessa-me a beleza. Onde ela existir, eu quero estar lá.

A beleza emociona-o.

Completamente! Para mim, a beleza é o ponto máximo que eu almejo. A beleza, mais do que qualquer outro valor. E a beleza está presente em todas as artes.

A sua poesia fermenta em todas as artes?

Ah, sim! Mesmo como tema. Volta e meia estou falando de pintura, de arquitectura. Mas, mais do que como tema, interessa-me tomar certos valores dessas artes, certas possibilidades de construção. Da arquitectura, interessa-me conseguir no verso, na elaboração das estrofes, uma certa economia. Fazer o que certos arquitectos,certos escultores, certos pintores fazem. Conseguindo desse diálogo algo de facto fecundo, ao nível da construção poética.

Considera que os poetas e a sua poesia são um mesmo corpo?

Terei que dizer que sim e que não. A um certo nível são o mesmo corpo; mas num outro nível, não. No entanto, são inseparáveis, pois a poesia é quase uma fala do corpo. Tudo tem uma conformação humana, sobretudo humana no sentido mais físico do termo. Então nesse sentido a poesia sempre é um prolongamento do corpo. Mas, ao mesmo tempo, quando se prolonga, de algum modo deixa de ser...

Nossa propriedade?

Isso mesmo, passa a ser outro corpo, com as suas leis, com a sua física, com os seus mecanismos próprios, que já não coincidem com as leis e os mecanismos que regem o corpo do poeta. E a partir daí são seres e corpos completamente diferentes.

Mas pode haver um diálogo.

Sempre há algum nível de diálogo. Quando se lê Camões, de algum modo toca-se Camões, quando se lê a poesia do Pessoa, de algum modo toca-se Pessoa. Embora, por seu lado, o leitor, durante a leitura da poesia, lhe dê igualmente o seu corpo. Então o corpo que aparece é o corpo do leitor. Aliás, a poesia só acontece se o corpo do leitor estiver presente.

Se ele fizer da poesia o seu corpo?

Nem mais, se fizer da poesia o seu corpo. Mas o corpo do poeta está sempre presente. Por isso, há um nível de erotismo muito forte em qualquer poesia. Por vezes o erotismo está lá, embora submerso.

Portanto, o corpo do poema é muito físico?

Claro, até a nível da construção sonora, é muito físico!

E quantos corpos há na realidade num poema?

Bem, há o corpo do poeta, há o corpo do poema, há o corpo do leitor e há ainda todos os corpos de que o poeta fala.

A sua poesia não é muito mais metafórica?

A minha poesia tem na realidade muitas imagens, muitas metáforas, mas eu não gosto de perder o meu laço com o real, com as coisas.

Também na Rua do Mundo?

Também na Rua do Mundo a realidade está presente, o nome das ruas, a geografia, o mundo palpável, de todos os dias. Exactamente como ele se mostra aos meus olhos.

O real revisitado pela poesia?

O real caldeado e revisitado pela poesia, pois não é urna poesia descritiva, objectiva, que se cola ao real e aquilo é o suficiente. Mas eu também nunca perco o contacto com as coisas. Não sou da família dos poetas a quem se pergunta “o que é a sua poesia”, e eles respondem que é um desvelar da luz. Detesto isso, eu não sou assim.

Se não é assim, então é como?

Eu gosto de descrever; e quando falo prefiro a objectividade, a clareza, tentar chegar a qualquer coisa que não seja uma metáfora da metáfora, a poesia da poesia.

Num mundo de coisas sem magia?

Um mundo onde as coisas são incríveis não porque elas estejam num outro plano, mas porque estão neste plano – quanto mais neste plano físico, mais inacreditáveis as coisas são. Há poetas que pensam de uma maneira, digamos, mais mágica. Não é o meu caso.

Mas, na Rua do Mundo, há um poema sobre uma pomba-gira...

Há, mas isso é outra coisa, a pomba-gira é uma entidade da macumba do Rio de Janeiro, é um poema que fala da pomba-gira que roda, que gira, e a certo momento diz que está encarnada. Ora a mim só interessa o que está encarnado, só me interessa o que tem corpo. Até um espírito, desde que esteja encarnado.

O movimento surrealista, então, não lhe interessa, mesmo como corrente póética?

Não muito... Vamos ver o que me interessa no surrealismo: o que nele há de construção, de imagem arrojada, de combinação inusitada. Isso interessa-me bastante.
Como lição de forma menos do que como uma superação das combinações lógicas dos seres e das coisas. Interessa-me mais quando se trabalha na combinação inusitada dos signos. Detesto Salvador Dali.

Está mais perto de Max Ernst?

Estou, sobretudo interessa-me mais o surrealismo nas artes plásticas do que na literatura. Interessa-me muito mais o Magritte quando põe uma mesa sobre uma maçã.

Você é um poeta da economia na criatividade?

Sou um poeta da economia do menos.

Isso não o aprisiona, não o limita?

Pelo contrário, estou cada vez mais livre para que os meus versos, para que as minhas formas se prolonguem, respirem mais, tenham mais sintaxe. Cada vez me abro mais para isso. Mas, jamais chegarei ao jorro, ao excesso, eu não sou dessa família. Não sou da família do Herberto, sou da família do Eugénio.

E, literariamente, a que família brasileira pertence?

Estou muito dentro da tradição do modernismo brasileiro.

Tem vergonha de fazer poesia de amor?

De maneira nenhuma! Adoro e faço muita poesia amorosa. Acho uma pena que se faça cada vez menos. O amor hoje é um tema um pouco desmoralizado. Qualquer tema prazeroso está desmoralizado.

Que poesia gostaria de fazer?

Eu queria fazer urna poesia da alegria. Acho que não faço, porque ainda não sei chegar a esse ponto. Mas não considero a dor e o sofrimento mais dignos do que a alegria, o prazer, a satisfação, a beleza, o deleite. O que me interessa no Matisse é a alegria, o que me interessa no Miró é a alegria.

E há alegria na escrita da Claricece Lispector?

Há uma alegria onde a dor é muito forte. Na verdade, a Clarice tem uma escrita da dor, mas na dor há sempre uma aleluia, há sempre uma luz. A Clarice é uma escritora que se afunda na mais profunda escuridão sempre para depois vir até à luz.

O que lhe interessa a si é a luz?

Exactamente, em todos os seus sentidos, desde o sentido físico ao seu sentido mais simbólico. Sim, o que me interessa é a luz.