O poeta vê a cidade
Para Marlene de Castro Correia

Antes da adoção de modos mais complexos para interpretar ou definir a cidade, investimo-nos imediatamente – como se guiados por um vício do corpo e do olhar – de um saber que mistura vagamente impressões tomadas à geografia, ao urbanismo, à arquitetura. Embora uma trama muito mais complexa se realize sob o signo cidade, é a sua cenografia que inaugura nosso entendimento. A materialidade do urbano é avassaladora. E, ainda que essa materialidade apareça sob formas mais ou menos consistente em entidades de substância subjetiva, como o inconsciente, é mesmo sua qualidade cenográfica, de entorno, superfície, que imagino poder vislumbrar em alguns poemas de Drummond.

Em seu livro de estréia, Alguma poesia, o célebre “Poema de sete faces” realiza-se como cena de abertura de uma cinematografia urbana de tom modernista composta, dentre outros textos, por “Lanterna mágica”, “Nota social”, “Coração numeroso” e “Jardim da Praça da Liberdade”. Se ao lado da urbanidade radical de “Cota zero” encontramos o tédio caipira de “Cidadezinha qualquer”, entre estes dois extremos o poema “A rua diferente” tematiza o processo de transformação:

Na minha rua estão cortando árvores
botando trilhos
construindo casas.

Minha rua acordou mudada.
Os vizinhos não se conformam.
Eles não sabem que a vida
tem dessas exigências brutas.

Só minha filha goza o espetáculo
e se diverte com os andaimes,
a luz da solda autógena
e o cimento escorrendo nas formas.


A primeira estrofe descreve o processo de mudança da “rua diferente”: a natureza – “árvores” – é subtraída e novos elementos, construídos – “trilhos”, “casas” – são acrescentados. A segunda é introduzida por um verso que sugere a rapidez de todo o processo: o intervalo de uma noite. Os “vizinhos” reagem às mudanças e merecem um comentário, no mínimo, ambíguo: “eles não sabem que a vida/ tem dessas exigências brutas.” O sujeito poético, conquanto reconheça a brutalidade das transformações, não se posiciona claramente. É como se apenas aceitasse, e a inevitável aceitação neutralizasse qualquer crítica. Mas é possível ver uma certa superioridade em sua apatia, pois, contrastando com os “vizinhos” – que “não sabem” – ele é o que sabe; e só ele parece capaz de aceitar. A terceira estrofe apresenta-nos a “filha”; com ela, o poema ganha movimento, cor, musicalidade. Sob os olhos da criança, tudo se converte em espetáculo, em matéria lúdica.

Nessa espécie de transposição para o universo familiar da grande marca urbanística de nosso tempo – a modernização das cidades –, a violência do crescimento urbano mostra-se inevitável. Seu caráter arbitrário desaparece para dar lugar, por meio da ironia, a um fenômeno da existência: “(...) a vida tem dessas exigências brutas”. A transformação é inexorável: a rua acorda mudada como a noite que se fez dia. A mudança abala a estabilidade físico-social. Ao verem interrompido o moto-contínuo da perpetuação, os “vizinhos” apresentam-se como ordem estável, inconformada diante do crescimento urbano, desagregador. Em contrapartida, surge a máxima aprovação no olhar ingênuo da “filha”. Com ela, sai de cena a mera aceitação diante do mal inevitável: a renovação ganha agora o sinal positivo da “luz”, das estruturas que se elevam do chão (“andaimes”), da ciência (“solda autógena”), do “espetáculo” e da diversão, do maravilhoso abandono do velho e das formas fixadas pela memória ou pelo hábito. Cortadas as raízes, surge um mundo em direção ao futuro – como a própria criança – em processo, em fazimento: “e o cimento escorrendo nas formas”. O passado é estreito, a matéria transborda.

Mas as relações entre renovação urbana, construção, destruição, ciência e arte apareceriam mais definidas e mais complexas no decorrer da obra de Drummond. “Edifício Esplendor”, de José, é um bom exemplo. Dividido em cinco partes, sua primeira estrofe é reveladora:

Na areia da praia
Oscar risca o projeto.
Salta o edifício
da areia da praia.


Sai de cena a construção (“A rua diferente”) e entra o desenho. Ou ainda, os materiais (“solda autógena”, “cimento”) e os equipamentos (“andaimes”) dão lugar ao projeto, pleno de seu sentido originário: projectum, traçar o futuro, a utopia.

Iniciando-se pela imagem que mostra o ato de riscar o projeto, o poema empresta ao gesto do arquiteto um claro valor de inauguração, de origem. A areia da praia – espaço privilegiado nos mitos que contam o surgimento do mundo – substitui o prosaico papel na prancheta e, desse modo, a cena ganha uma dimensão cosmogônica: o arquiteto é alçado à condição de um deus. Na visão clássica de Vitrúvio (? – 26 d.C.), autor do célebre tratado De architectura, a concepção do desenho arquitetônico era uma atividade governada por leis estéticas responsáveis por reger a ordem cósmica e as proporções harmônicas da beleza. E, ainda hoje, permanece a analogia entre a definição da forma arquitetônica e a ordenação do cosmo. O psicanalista James Hillman comenta que nossos projetos e maquetes são geralmente concebidos de cima, com a perspectiva do teto para baixo, e afirma: “o lugar que os Deuses abandonaram é agora ocupado pelo arquiteto”.1 O poema “Edifício Esplendor” participa desse conjunto de discursos que apontam para o arquiteto como artífice da ordem, demiurgo, e, conseqüentemente, para o projeto como ato cosmogônico, divino: “salta o edifício/ da areia da praia”.

Mas o fato de o arquiteto possuir um nome – “Oscar” (sem dúvida uma referência a Oscar Niemeyer) – acrescenta à dimensão mítica uma presença arrancada do real, biográfica, atual. Cruzam-se, portanto, a atemporalidade cosmogônica e a contemporaneidade. A primeira vertente sugere o valor inaugural da arquitetura como ordenação do universo e seu ato criador como um gesto divino; a segunda acrescenta um dado histórico. Os dois vetores, no entanto, não se eliminam mutuamente. Ao contrário, mostram-se, neste momento, como forças complementares. A arquitetura é apresentada como atividade contígua ao mito mas o que o poema colocará em cena é uma determinada arquitetura: a moderna. Assim, o nome de Niemeyer poderia ser substituído pelo de Gropius, Le Corbusier ou Mies van der Rohe sem que o poema sofresse qualquer alteração de sentido mais significativa.

Eduardo Subirats aponta para o fato de que a analogia clássica entre o fazer arquitetônico e a ordenação do universo parece ressurgir no projeto da modernidade: a vaga demiurgia do arquiteto apresenta-se agora racionalizada, historicizada, definindo-se como instrumento privilegiado na construção da nova utopia. Investida de valores sociais, políticos, éticos e estéticos extraordinários, a arquitetura surge, a um só tempo, dotada dos poderes da práxis e do mito.2 “Edifício Esplendor” traz à cena essa arquitetura sobrevalorizada, potencializada. Mas, se em sua primeira estrofe o poema aponta para a utopia, a partir daí o leitor é levado para dentro de um pesadelo – a crise da cidade, ou ainda, da modernidade:

No cimento, nem traço
da pena dos homens.
As famílias se fecham
em células estanques.

O elevador sem ternura
expele, absorve
num ranger monótono
substância humana

Entretanto há muito
se acabaram os homens.
Ficaram apenas
tristes moradores.


Com o projeto posto em obra, já não há correspondência entre a utopia e a realização. Contrastando com a leveza da “areia da praia”, a segunda estrofe abre-se com uma radical mudança de substância, de volume, de peso: “no cimento, nem traço/ da pena dos homens” (grifo meu). O jogo de significações com as palavras “traço” (vestígio, rastro, sinal, mas também esboço, delineamento) e “pena” (o instrumento com que se desenha e, ao mesmo tempo, mágoa, aflição) forma um quadro melancólico em que a utopia já não faz sentido e a realidade prescinde dos valores humanos. As “células estanques” operam uma brusca redução espacial em confronto com a “praia” do início do poema. Fechamento e descontinuidade encontram no “elevador” uma imagem-síntese: sufocamento, subordinação do movimento e da vitalidade humanos à rigidez e à monotonia da máquina.

Focalizado inicialmente como um ser à altura do mito, o homem surge agora diminuído ao extremo, à condição de não-homem: numa voluptuosidade mórbida, a arquitetura projeta um mundo onde só há “moradores”, peças sem alma, a serviço da máquina urbana.

As outras quatro partes do poema reafirmam essa queda: a modernidade assiste ao fim de sua utopia. Mas a imagem capaz de resumir todo esse processo talvez seja “no cimento, nem traço/ da pena dos homens”: à clareza do projeto opõe-se um edifício-labirinto sombrio; contrariando a imagem vital do ato criador, a construção é sobretudo morada da morte; ao invés do gesto livre – meio divino, meio animal (saltar da areia) – tudo se movimenta monótona e “bruscamente”, como máquina. Há, portanto, um choque absoluto entre dois momentos: a utopia, a clareza, a racionalidade do projeto (na primeira estrofe) e a clausura, a desumanização, a irracionalidade, a morte, em todo o poema. O texto constrói-se como um delírio: imagens perturbadoras criam uma interpenetração de tempos e espaços em que mortos ressurgem e retratos ganham vida.

Os dois últimos versos fazem a síntese de tudo. E, curiosamente, eles, a um tempo, aumentam a carga onírica do poema e devolvem a insólita narrativa à sua condição histórica:

– Que século, meu Deus! diziam os ratos.
E começavam a roer o edifício.


Não há dúvidas quanto ao olhar retrospectivo do texto, que se realiza como crítica contundente ao nosso tempo. O poema tem no edifício uma perfeita metáfora da cidade moderna porque toma à modernidade seu signo mais radical e que melhor a traduz: a arquitetura. “Edifício Esplendor” é, desse modo, uma espécie de theatrum no qual o leitor assiste à cidade – à arte, ao homem, a todo um projeto civilizatório – em ritualística autofagia.

Os primeiros traços formadores dessa patologia na qual a cidade se volta contra si mesma dizem respeito ao desenvolvimento técnico-científico: do momento áureo do projeto sendo riscado na areia da praia, somos arrancados para o “elevador” – já não há ternura, ritmo, vitalidade. A parte IV repete essa presença, referindo-se ao “pavor do caixão/ em pé no elevador”. Elemento decisivo no processo de verticalização das cidades, o “elevador”, no repertório específico da poesia drummondiana, é imagem paradigmática, metáfora da urbanidade nos versos emblemáticos de “Explicação”, de Alguma poesia: “No elevador penso na roça,/ na roça penso no elevador.” Em “Edifício Esplendor”, ele alcança os sentidos de desumanização e morte, dentro do quadro onde a civilização da máquina expõe sua morbidez: “as complicadas instalações de gás,/ úteis para suicídio”. O poema, desse modo, atinge o coração da modernidade, seu valor mais precioso, a um só tempo fenômeno técnico-científico e valor cultural, civilizacional: o maquinismo.

Nas duas primeiras décadas do século XX, a máquina constituiu-se em princípio de uma utopia. Os movimentos artísticos revolucionários do pós-guerra viram no maquinismo um “princípio de salvação e de esperança”3, capaz de racionalizar e libertar a um só tempo a arte e a sociedade. Porém, tantos conteúdos não chegaram a constituir um campo capaz de resistir às pressões dos contextos históricos e sociais que se seguiram: o desenvolvimento técnico-científico abjurou seus valores éticos, seus interesses políticos e culturais. Do mesmo modo, a arquitetura renunciou à sua orientação revolucionária (em direção a uma ordem racional e libertadora da sociedade) para se converter numa forma impessoal, fria. Eduardo Subirats relaciona essa crise à concepção filosófica das ciências: por um lado, assumiu-se a incapacidade de manter um vínculo interior entre a razão científica e a sobrevivência humana (as conseqüências de tal postura levariam, mais tarde, à bomba atômica, que Drummond tematiza de forma contundente no poema “A bomba”, de Lição de coisas). Por outro lado, a ciência afirmou seu absoluto ceticismo, livrando-se de qualquer nexo teórico entre o conhecimento e os princípios da moral, da verdade e da liberdade.

“Edifício Esplendor” desenha exatamente esse quadro em que o princípio maquinista já não é a sonhada força capaz de dar ao mundo uma ordem harmônica; o desenvolvimento tecnológico está convertido em signo destrutivo e o desenho resume-se a uma sintaxe vazia: “no cimento, nem traço/ da pena dos homens”.

Razão e violência opressiva; desenvolvimento técnico-científico e destruição; Subirats vê esses ajustamentos como uma identificação da máquina com o demoníaco: “uma força irracional e incontrolável de signo negativo e destruidor”4. O edifício de Drummond ergue-se sob o domínio desse signo. Tal qual um delírio, um descontrole dos sentidos e da lógica, um pesadelo, não há limites entre a vida e a morte, o passado e o presente. Após o controle da natureza, a irracionalidade ressurge, assustadora, nos objetos que povoam a cidade. A extravagância do espetáculo já não permite distinguir com clareza um discurso, uma lógica, valores: tudo entra e sai de cena como peças de um jogo em que, aparentemente, não há jogadores, mas apenas um movimento paranóico de formas que se agregam e se eliminam sob o jugo de forças incompreensíveis.

Essa arquitetura extravagante de Drummond também aparece no poema “A torre sem degraus”, de A falta que ama:

No térreo se arrastam possuidores de coisas recoisificadas.
No 1º andar vivem depositários de pequenas convicções, mirando-as [remirando-as com lentes de contato.
No 2º andar vivem negadores de pequenas convicções, [pequeninos eles mesmos.
No 3º andar – tlás tlás – a noite cria morcegos.
No 4º, no 7º, vivem amorosos sem amor, desamorando.
No 5º, alguém semeou de pregos dentes de fera cacos de espelho [a pista para o baile das debutantes de 1848.
No 6º, rumina-se política na certeza-esperança de que a ordem [precisa mudar deve mudar há de mudar, contanto que não se [mova um alfinete para isso.
No 8º, ao abandono, 255 cartas registradas não abertas selam o [mistério da expedição dizimada por índios Anfika.
No 9º, cochilam filósofos observados por apoftegmas que não [chegam a conclusão plausível.
No 10º, o rei instala seu gabinete secreto e esconde a coroa de [crisópasos na terrina.
No 11º, moram (namoram?) virgens contidas em cintos de [castidade.
No 12º, o aquário de peixes fosforescentes ilumina do teto a [poltrona de um cego de nascença.
………………………………


O poema prossegue, acompanhando cada andar do edifício; sua interrupção (do poema) dá-se apenas pela impossibilidade de seguir indefinidamente, como o edifício. Diz o último verso: “No 43º, no 44º, no... (continua indefinidamente)”.

A monotonia (referida metalingüisticamente em “No 35º, queixam-se da monotonia deste poema”), a estrutura repetitiva e a longa seqüência de versos assemelhados à prosa emprestam à própria estrutura do poema a feição exagerada e artificial dos elementos de representação.

Acertadamente, José Guilherme Merquior5 define o poema como “obra prima do grotesco”. De fato, cada um dos andares povoa-se de cenas e personagens bizarros e o conjunto do poema ergue aos olhos do leitor uma construção exagerada, monstruosa, próxima das formas maneiristas pelo artificialismo e pelo gosto por imagens horripilantes, repulsivas. O edifício é povoado por pesadelos e um olho onisciente é capaz de fixar numa seqüência angustiante cada um dos andares que compõem essa torre, muito próxima do universo paranóico dos quadros de Salvador Dali.

O poder tirânico da grande cidade, porém, mostra-se como pesadelo menos em função das cenas bizarras que se desenrolam em cada andar do edifício-torre que pelo efeito de gigantismo do conjunto. O título do poema e a idéia de uma construção descomunal remetem imediatamente à narrativa bíblica da construção da “Torre de Babel” (Gênesis, 11:1-9), que simboliza, sobretudo, a hybris humana: dispostos a alcançar os céus, os homens confrontam-se com a ordem divina, poderosa e disposta a castigá-los. A presença insistente de Babel no imaginário urbano da modernidade confirma a visão da cidade como conquista e catástrofe, desafio e castigo. O poema de Drummond envia-nos à torre bíblica pela encenação do caos e pela crítica ao gigantismo. A continuidade (“indefinidamente”) da “Torre sem degraus” aponta para um universo onde não há mais a ordem superior para sustar o empreendimento humano, onde a cidade cresce ininterruptamente, monstruosamente:

Na ausência dos Deuses, as coisas tendem para as enormidades. Um sinal da ausência de Deus é a imensidão, não meramente no reino da quantidade, mas enormidade enquanto qualidade, como uma descrição horrível ou fascinante, como o Buraco Negro, Aglomerados, Guerras nas Estrelas. Quer se manifeste nas imagens de corporações multinacionais, oceanos poluídos ou nas grandes variações climáticas, a imensidão é a confirmação do Deus ausente. Ou, digamos, que os atributos divinos da onipotência, onisciência e onipresença subsistem sozinhos. Sem o governo benevolente da divindade, a Onipotência, Onisciência e Onipresença se tornam Deuses. Em outras palavras, sem os Deuses os Titãs retornam.6

O quadro apresentado por Hillman serve para descrever o gigantismo da torre drummondiana como volume e qualidade: sua forma e sua semântica. Tais enormidades são deformações que criam outras monstruosidades incessantemente, como uma máquina produtora de semelhanças que se acumulam e produzem mais um andar, e outro, e outro, “indefinidamente”: o gigantismo da torre é dinâmico. Daí essa forma que se auto-produz ser uma torre “sem degraus”, pois funciona como espiral que agrega a cada andar um outro, numa operação barroca que empresta ao edifício um caráter orgânico, à maneira de um labirinto que não parasse de crescer e cujos meandros não guardassem qualquer ponto central para chegada.

Relações entre a cidade e a ordem divina aparecem em outros momentos da poesia de Drummond. Em “Num planeta enfermo”, de Discurso de primavera, depois de contar o caso de uma “estranha neve” (“flocos de espuma detergente”) que se espalha sobre uma cidade chamada Parnaíba, o sujeito poético se pergunta: “Pesadelo? Sinal dos tempos?/ Jeito novo de punir as cidades, pois a Bíblia/ esgotou os castigos de água e fogo?”. O poema “Triste Horizonte”, no mesmo livro, desenha um quadro em que a cidade se corrompeu totalmente e seus santos protetores “agora protegem-se a si mesmos”, convertidos em negociantes inescrupulosos: “São José vai entrar feio no comércio de imóveis,/ vendendo seus jardins reservados a Deus.” Aparece, mais uma vez, a imagem do castigo divino em oposição aos abusos da cidade:

Não escutam a voz de Jeremias
(e é o senhor que fala por sua boca de vergasta):
“Eu vos introduzi numa terra fértil,
e depois de lá entrardes a profanastes.
Ai dos pastores que perdem e despedaçam
o rebanho da minha pastagem!
Eis que os visitarei para castigar a esperteza de seus desígnios.”


O caráter cósmico ou religioso dos dramas urbanos serve, na verdade, para sublinhar o gigantismo absurdo das cidades. O que esses poemas sugerem não é a existência de uma ordem superior em oposição à metrópole e seus homens, mas a idéia de que o gigantismo das cidades está investido de poderes absolutos, portanto, para além do humano.

É possível juntar a “Edifício Esplendor” e “A torre sem degraus” um terceiro exemplar da “arquitetura” de Drummond: “Edifício São Borja”7, de A rosa do povo. As quatro primeiras de suas doze estrofes já deixam ver o quanto o poema se constrói como fluxo perturbador:

Cólica premonitória
caminho do suicídio
fome de gaia-ciência
São Borja

Esqueléticos desajustados
brigando com a vida nus
surgindo à noite em fragmentos
São Borja

Ritmo de poeta mais forte
nesta mão se inoculando
projeto de fuga ao Chile
à tua casa de infância
ao adro da igreja tombada
São Borja

Cerveja em copo de pedra
Sonhos os mais obscuros
na palma da mão
na reuma
São Borja


Ainda que algumas imagens possam ser agrupadas em pequenos campos de significação (a morte, a fuga, a resistência, o passado, a utopia), estes não chegam a formar um conjunto maior, coerente, inteligível. O hermetismo do texto constrói estrutural e semanticamente um edifício que recusa a presença humana, negando a própria razão de ser de qualquer arquitetura: fazer-se habitável. Em “Edifício Esplendor” é o próprio sujeito poético que se mostra subjugado a esta força, que o expulsa, que nega sua presença, seu corpo:

Ah, o corpo, meu corpo,
que será do corpo?
(...)


Mas “Edifício São Borja” já não põe em cena qualquer individualidade capaz de reclamar por seu corpo, suas fronteiras; agora, todas as imagens são fragmentárias e o edifício que surge é apenas patético amontoado de restos que parecem falar de si mesmos em imagens como “surgindo à noite em fragmentos”, “sonhos os mais obscuros”, “caos”, “espasmo”, “o tempo se despencando”.

Assim como “Edifício Esplendor” e “A torre sem degraus”, “Edifício São Borja” é um objeto híbrido, ao mesmo tempo monumento (estrutura vigorosa, gigantesca) e ruína (fragmentação, acúmulo, ausência de qualquer harmonia, subtração do humano ou sua presença fantasmagórica).

Os edifícios drummondianos, monstruosos filhos da modernização das cidades, nascem diretamente ligados à ruína, ao desabamento, à demolição e outras formas de apagamento que abrem terreno para formas urbanas e/ou arquitetônicas mais “avançadas”. O belíssimo “A um hotel em demolição”, de A vida passada a limpo, trata exemplarmente da “morte” de um edifício, o Hotel Avenida, inaugurado na Av. Central à época de Pereira Passos, em 1911, e demolido em fins dos anos 50. Conforme Affonso Romano de Sant’Anna, o “hotel” sintetiza as imagens da “casa-edifício-cidade” como extensões físicas do homem no fluxo temporal e a estruturação do texto reflete um quadro de “fluxo-destruição”8. Em meio ao acúmulo de imagens superpostas de modo perturbador, o sujeito poético invoca um personagem real como o hotel – o fotógrafo Malta9:

Vem, ó velho Malta
saca-me uma foto
pulvicinza efialta
desse pouso ignoto.

Junta-lhe uns quiosques
mil e novecentos,
nem iaras nem bosques
mas pobres piolhentos.
(...)

Lá do assento etéreo,
Malta, sub-reptício
inda não te fere o
super edifício

que deste chão surge?
Dá-me seu retrato
futuro, pois urge

documentar as sucessivas posses da terra até o juízo final e mesmo depois dele se há como três vezes confiamos que haja um supremo ofício de registro imobiliário por cima da instantaneidade do homem e da pulverização das galáxias.


De fato, as imagens captadas pela lente de Malta não raro fixaram um processo desenvolvido em vários tempos: antes, durante e depois da demolição, indo até ao surgimento de um novo prédio ou benfeitoria. Graças a tal poder de fixar o objeto no tempo, o fotógrafo surge como personagem emblemático no poema. Sua função seria a de registrar, atendendo a um pedido claro: “saca-me uma foto”. Não há qualquer desejo de idealização do espaço, pois, ao contrário, é preciso que toda a vida miúda ao redor do edifício seja retratada em sua “condição lacaia”. O sujeito poético, porém, quer ainda “outra chapa”. Como se só então considerasse a condição de Malta como personagem livre de contingências – fora do fluxo temporal – a foto sugerida agora é o “retrato futuro” do “super edifício” que se erguerá no lugar do hotel. A documentação, assim como o documentarista, também está livre de condicionamentos prosaicos e, longe de se configurar como valor acidental, ergue-se à condição de relato da existência humana: “(...) urge documentar as sucessivas posses da terra até o juízo final e mesmo depois dele (...)”. A imagem aponta para um processo de ocupação/urbanização no qual a cidade surgiria como ambiente natural da civilização, cabendo à história relatar essa cosmogonia urbana. História “urgente”, pois o documento tem como inimigo o fluxo ininterrupto do tempo a destruir todas as formas. O “juízo final” aparece como antevisão de um clímax para a caminhada trágica da cidade-existência humana. Nessa potenciação de todos os valores, a história/registro sai das mãos do homem e alcança um estatuto divino: anuncia-se a existência provável de um “supremo ofício de registro imobiliário por cima da instantaneidade do homem e da pulverização das galáxias”. A urbanização absoluta e a visualização de uma burocracia celestial assinalam com ironia a “instantaneidade” da existência humana em confronto com um poder supremo. Repete-se, portanto, o quadro da demolição do hotel; ou, a demolição do hotel repete um quadro maior, onde o aniquilamento das formas encena uma tragédia de dimensões cósmicas.

Se o tema da demolição é constante na literatura do nosso século, visto que na modernidade as formas já nascem sob o signo do efêmero, na poesia drummondiana, a destruição de um edifício nunca é um fenômeno externo: a cidade está confundida com o sujeito poético de tal modo, que na demolição ele assiste à morte e morre, conforme “O nome”, de As impurezas do branco:

Estão demolindo
o edifício em que não morei.
Tinha um nome
somente meu.
(...)

Amanhã o galo
cantará o fim
do que no edifício
e numa pessoa
cabe em um nome
e é mais do que nome?


Entre o homem e o edifício há o “nome”, cuja leitura, mais que decifração, é recifração. A leitura surge como poderoso processo de singularização no qual se devolve ao nome e a seu suporte o poder do enigma: “tinha um nome/ somente meu”. Se a demolição – a morte – instala a dúvida quanto à consistência e à permanência daquilo que se leu e de quem o leu (“Ficará em mim /o nome que é meu? /Ficarei /para preservá-lo?”) a dúvida traz, no entanto, a certeza de que algo é mais que o nome – o algo que ele nomeia e que lhe dá a condição de enigma. Paira, no entanto, sem resposta, uma questão: o fim do que no nome é apenas um arranjo externo, convencional e que “letra por letra/ se desletrará”, implica o fim da coisa que “cabe em um nome/ e é mais do que nome?” A cidade singularizada da poesia de Drummond é essa paisagem dentro-fora, não tão interna que possa ignorar o edifício-lá, nem tão externa que não ouça numa demolição, sobre os escombros, flutuar a pergunta: o que morre quando se morre?

“A um hotel em demolição” e “O nome” abordam o mesmo tema e, de modo semelhante, dão ao fato urbano uma dimensão existencial. No primeiro poema, cabe à fotografia guardar uma certa memória do hotel, a vida em sua volta, sua pulsação urbana. Este registro, porém, é apenas uma espécie de fragmento sincrônico de uma fotografação cujo sentido, mais que histórico, extrapola os limites da própria existência humana. Função semelhante tem, no segundo poema, a leitura. Em “O nome”, vemos a fragilidade mnemônica de uma operação circunscrita aos limites do humano, portanto do efêmero, mas, ao mesmo tempo, a possibilidade de permanência de algo que, mesmo indo além das raias do nome e da leitura, existe no nome e na leitura. Nos dois poemas, portanto, a fotografia e a palavra (a leitura, o nome) surgem como reptos diante de uma cidade convertida em espaço do trágico: se, por meio de forças incontroláveis – portanto assemelhadas ao divino, como em “A um hotel em demolição” e “A torre sem degraus” – sobrevém, com a força de um castigo, a morte, é necessário redesenhar territórios para a memória. Assim, a poética drummondiana propõe a incorporação simbólica do demolido, da ruína, dos restos, dos resíduos como modo de conhecimento.

Contra a demolição dos territórios da subjetividade, da sensibilidade, da inteligência e do sonho, opõe uma operação de reconquista; instala-se, desse modo, uma interrogação sobre a cidade e suas mutações. A morte não decreta o fim, mas, ao contrário, possibilita novos arranjos.


NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 – HILLMAN, James. Cidade e alma. Trad. Gustavo Barcellos e Lúcia Rosenberg. São Paulo: Studio Nobel, 1993, p. 45.
2 – SUBIRATS, Eduardo. Da vanguarda ao pós-moderno. Trad. Luiz Carlos Daher, Adélia B. de Meneses e Beatriz A. Cannabrava. São Paulo: Nobel, 1991.
3 – Idem, p. 51.
4 – Idem, p. 41.
5 – MERQUIOR, José Guilherme. Verso universo em Drummond. Trad. Marly de Oliveira. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976, p. 235.
6 – HILLMAN, op. cit. p. 144.
7 – O edifício de que trata este poema existe ainda hoje, no Centro do Rio de Janeiro, à Av. Rio Branco. Erguido em frente ao antigo Senado Federal (instalado no Palácio Monroe em 1925), o Edifício São Borja era bastante freqüentado pelos homens do governo, o que lhe garantiu a alcunha de “Senadinho”. Provavelmente, tal “intimidade” com o poder, em pleno Estado Novo, motivou o sombrio e irônico poema de Drummond.
8 – SANT’ANNA, Afonso Romano de. Carlos Drummond de Andrade: análise da obra. 2ª ed. Rio de Janeiro: Documentário, 1977, p. 119.
9 – Malta é o nome pelo qual ficou conhecido o fotógrafo documentarista Augusto César de Malta Campos, que, contratado pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro para registrar a remodelação da cidade nos anos iniciais deste século, produziu um dos mais importantes relatos históricos do período.

in: Revista Poesia sempre, nº 16, 
Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, out. 2002.