Ouvir o poema
Releio o antológico “Poema de Helena Lanari”, situado na parte “Brasil ou do outro lado do mar” do livro Geografia:

Gosto de ouvir o português do Brasil
Onde as palavras recuperam sua substância total
Concretas como frutos nítidas como pássaros
Gosto de ouvir a palavra com as suas sílabas todas
Sem perder sequer um quinto de vogal

Quando Helena Lanari dizia o “coqueiro”
O coqueiro ficava muito mais vegetal (III, 81)


O nenhum pejo de gostar e de dizer do gosto, o elogio da língua falada pelos brasileiros, a cena relâmpago-narrativa ao final, envolta em amizade e ternura, tudo surge vazado numa escrita prazerosa, numa espécie de descanso onde a linguagem afrouxa os laços das metáforas para dar vez a imagens e afirmações de tom delicadamente trivial. A naturalidade e a elegância culminam no último verso, de um coloquialismo assertivo e límpido. Estou, estamos, diante de um poema cuja graça e beleza reportam-se ao universo do Manuel Bandeira modernista. E, também como nos versos bandeirianos, a simplicidade é sofisticada e penetrante.

A terra e o idioma se confundem. Já o segundo verso produz certa indistinção entre o lugar e a língua, visto que a expressão “Onde as palavras” (grifo meu) pode referir-se tanto ao “português do Brasil” quanto ao “Brasil” apenas. Outro incerto espelhamento surge na comparação das palavras ditas em voz brasileira com “frutos” e “pássaros”, elementos que qualificam a concretude, a nitidez, a leveza da fala, mas que, simultaneamente, apontam para a própria terra, o Brasil, sua natureza. A esses elementos naturais vem somar-se aquele escolhido para exemplificar a fala de Helena Lanari: “coqueiro”. De fato, é como se soasse na base do texto de Sophia o imaginário romântico do e sobre o Brasil. Dos versos de Sophia podemos aproximar a singeleza e a substantivação do romantismo da “Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, ou a iconografia enxuta de artistas viajantes oitocentistas como Thomas Ender, Felix Émile Taunay e Emil Bauch. Os ícones da natureza brasileira, no entanto, não surgem no “Poema de Helena Lanari” como constitutivos de uma paisagística, como valores em si mesmos, porquanto justificam suas presenças, ao contrário, com uma função: dizer da nitidez das palavras na fala brasileira, estas sim o foco de interesse do poema. Mas se, neste primeiro momento, elementos telúricos vêm ao texto para descrever um fenômeno cultural – “o português do Brasil” –, logo a natureza reaparece recriada, reinventada pela própria língua – “o coqueiro ficava muito mais vegetal”.

Os versos, pelo menos à primeira vista, não apresentam “as palavras” como entidade subjetivada ou em sua qualidade poética. Antes, localiza-as numa atividade específica: a fala. Ou, ainda, longe de toda abstração, o poema mostra-as como matéria do funcionamento linguístico no discurso oral. Assim, assistimos, inicialmente, a uma espécie de exame da fonação, a emissão apenas, considerada sob seu aspecto articulatório e acústico, sem se levar em conta o valor da forma linguística, reunião de significante e significado. Dizer que no português do Brasil – e não há dúvidas de que aqui se faz uma comparação com o português de Portugal – as palavras são articuladas com suas “sílabas todas/ sem perder sequer um quinto de vogal”, donde a recuperação de uma “substância fônica total”, é um modo singular de dizer aquilo que a fonologia analisaria em termos de descrição dos fonemas em suas variantes posicionais e combinações. O “ouvido” de Sophia, digamos assim, confirma observações de cunho científico – a realização (fonética) anterior da vogal brasileira em oposição à realização mais recuada, mais central, do português europeu -, num poema onde o ponto de vista pessoal é tão explícito e asseverado quanto singelo: “gosto de ouvir” (no primeiro e no quarto versos).

Ao invés de metáforas, temos símiles que não apresentam grande complexidade ou dificuldade: no português do Brasil as palavras são “concretas como frutos nítidas como pássaros”. A ausência da vígula que separaria as duas comparações desfaz, habilmente, a possível dureza e mesmo a leitura fácil do verso, imprimindo-lhe uma leveza conquistada pelo vazio inesperado – como um vôo abrupto.

Com a imagem “um quinto de vogal” o poema diverte-se com a medida e a precisão, visto que o cálculo se dá apenas no campo da impressão. O humour, que tão raro comparece na poesia de Sophia, surge então como uma espécie de “homenagem” a um dos traços mais marcantes do modernismo brasileiro. Do mesmo modo, “frutos”, “pássaros” e “coqueiro”, que semelham algum parentesco ou simplesmente fazem lembrar a poesia e a pintura românticas, agora nos remetem igualmente à busca de brasilidade de modernistas como Mário e Oswald de Andrade, Drummond, Murilo Mendes e, mais uma vez, Manuel Bandeira.

Se, no “Poema de Helena Lanari”, a reflexão metapoética, aparentemente, dá lugar a ponderações sobre aspectos exteriores e coletivos da fala, também é certo que a poética de Sophia de Mello Breyner mantém-se, mesmo aqui, fiel à sua intensa e incansável procura pelas coisas “concretas” e “nítidas”, donde a simpatia pelo “português do Brasil”. Num segundo olhar, percebemos ainda que as imagens aparentemente desligadas de uma indagação poética voltam-se para o próprio poema e para a poesia. Mesmo a intitulação – “Poema de Helena Lanari” – ressurge-nos, então, com a oferta de algumas sugestões. Na obra de Sophia, se não chega a ser rara também não é frequente a presença de títulos que apontam para o próprio texto com o uso de termos como “poema”, “soneto”, “escrita” ou “poesia”. O primeiro deles aparece em maior número e quase sempre isolado – “Poema”. Em “Poema de Helena Lanari” não haveria um acento no caráter metapoético do texto? Ora, se os versos dizem-nos de um gosto por palavras “concretas” e “nítidas”, está aí em questão, sem dúvida, um pendor para a poesia que se faz com tais palavras. O atributo fônico do “português do Brasil” acaba por espelhar uma qualidade que Sophia procura infundir em seus versos, tornada uma das principais marcas de sua poética. A fala não é divisada no poema como um fluxo fácil de conteúdos. Antes, aparece na sua absoluta condição de significante, a ponto de converter-se numa espécie de matéria a ser alcançada, algo como uma miragem, um horizonte para a poesia. Os valores poéticos da concretude e da nitidez são atributos da matéria, do corpo: o som está para o discurso assim como as frutas, os pássaros e o coqueiro estão para o Brasil. Ao apontar para um modo de existência da palavra que não o da escrita, Sophia instala um espaço flexível de posicionamento, observação e proposição. Expõe-se, então, uma busca pela medida e pelo equilíbrio, avistados como numa “geografia”, paisagem recortada, nítida, luminosa, simultaneamente erguida e arrastada pela língua – não a mesma em que naturalmente se escreve, portuguesa apenas, porquanto a “língua” vem à cena no texto antes como um horizonte a que se chegar para a fundação de uma outra língua-mundo, acima dos contratos sociais, dos limites físicos e históricos: generosa, plena, ideal, inteira – a poesia.

Referi-me a uma “cena no texto”. De fato, ao transcrever um exemplo da fala a que se refere – “Quando Helena Lanari dizia o “coqueiro” – Sophia emprega aspas para marcar a transcrição (da fala brasileira), acentuando com isso a descontinuidade da escrita pela intervenção de um outro plano exterior a ela mas possível apenas dentro dela, como numa encenação ou escrita teatralizada. Retorna, no verso conclusivo – “O coqueiro ficava muito mais vegetal” – a voz de Sophia ela-mesma, ou ainda, a voz puramente escrita, voz da escrita, nem em “português do Brasil” nem em português de Portugal, mas em poesia, língua de fundação do mundo: o coqueiro “muito mais vegetal” faz parte de uma natureza na qual as coisas (como na fala brasileira) “recuperam sua substância total”, mundo de palavras e coisas inteiras, não divididas, onde tudo é visível ou é evidência – o poema. Dizer “coqueiro” numa língua onde as coisas se tornam “concretas como frutos nítidas como pássaros” é o poema de Helena Lanari. O título dado por Sophia deixa aberta tal possibilidade de leitura, diferentemente do que ocorreria com os possíveis “Poema para Helena Lanari” ou “Poema a Helena Lanari e formas afins.

A inequívoca simplicidade do poema não abre mão da sofisticação que põe em cena personagens, vozes, planos de realidades material e subjetiva, num quadro em que a apreciação mais corriqueira se converte, de modo delicadamente lúdico, em arte poética. Este “modo de fazer” sugere-me, mais uma vez, o de Manuel Bandeira, homenageado no poema que leva o seu nome , incluído na mesma seção do livro Geografia.

O poeta está “do outro lado do mar”, assim como Helena Lanari. Mas sua presença vem de uma lembrança que retorna ao tempo da juventude:

Relembrando
O antigo jovem tempo tempo quando
Pelos sombrios corredores da casa antiga
Nas solenes penumbras do silêncio
Eu recitava
“As três mulheres do sabonete Araxá”
E minha avó se espantava (III, 78)


A imagem do poeta brasileiro ressurge dentro da memória, no tempo e no espaço de uma casa “antiga”, de corredores “sombrios” e “solenes penumbras de silêncio”. O espanto da avó contrasta com a tranqüilidade da menina que recita os poemas. Não há dúvidas de que há uma aliança entre a juventude da leitora e a juventude dos versos, conforme a última estrofe:

Estes poemas caminharam comigo e com a brisa
Nos passeados campos da minha juventude
Estes poemas poisaram a sua mão sobre o meu ombro
E foram parte do tempo respirado


Em meio a sombras vetustas e silenciosas, os versos bandeirianos, sem que isso seja dito explicitamente no poema, funcionam como lâmpadas, estremecimento juvenil, graça, alegria, ar puro. Não são versos embaralhados na lembrança. A memória sabe seus nomes de cor: “(Balada d)As três mulheres do Sabonete Araxá”, “Trem de ferro”, “Poema do beco”, poemas de modernidade arrojada, lúdicos, paródicos, dramáticos, repletos de ritmo, claros e sem afetação mas, simultaneamente, refinados ao extremo, construídos como peças de grande força intelectual mas, ao mesmo tempo, plenos de emoção, de erotismo, de revolta. A juventude dos textos resultava, sem dúvida, dessa vitalidade, desse desassombro.

Se o interior da casa parece sintonizar com a avó, a jovem Sophia harmoniza-se com o espaço aberto:

Tempo antigo lembrança demorada
Quando deixei uma tesoura esquecida nos ramos da cerejeira
Quando
Me sentava nos bancos pintados de fresco
E no Junho inquieto e transparente
As três mulheres do sabonete Araxá
Me acompanhavam
Tão visíveis
Que um eléctrico amarelo as decepava


A estrofe apresenta um espaço e um tempo luminosos, arejados, nos quais reina uma cerejeira. Não por acaso, os bancos têm a tinta ainda fresca, porque tudo é recente, verdejante, viçoso. As mulheres do poema bandeiriano surgem sem as aspas que lhes apontavam a condição literária. Agora, as três mulheres estão vivas, como a árvore; são “visíveis”, como se recortadas pela tesoura que ficou “esquecida nos ramos da cerejeira”. No tempo e no espaço da juventude, misturam-se, portanto, o real, o fantasioso, o imaginário, num quadro em que a menina Sophia e a poesia de Manuel Bandeira se irmanam, respiram a mesma ternura, igualam-se na saúde, no vigor e na liberdade.

As três mulheres do Sabonete Araxá, tão visíveis, límpidas, pertencem à “família” dos frutos concretos e dos pássaros nítidos do “Poema de Helena Lanari”, bem como a cidade de Brasília – “Nítida como Babilónia” (III, 80) –, homenageada na mesma seção de Geografia, e que, como a poética bandeiriana, une poesia e juventude: “Brasília despojada e lunar como a alma de um poeta muito jovem”. O poema “Descobrimento” fala de um viço semelhante na cena do descobrimento das terras brasileiras pelos portugueses – o texto é escrito na primeira pessoa do plural –, mostrada como um espetáculo de renascimento do mundo e da espécie:

O mar tornou-se de repente muito novo e muito antigo
Para mostrar as praias
E um povo
De homens recém-criados ainda cor de barro
Ainda nus ainda deslumbrados (III, 77)


A natureza é presença cosmogônica tanto no descobrimento quanto no projeto de Brasília, visto que nesta cidade “a arquitetura escreveu a sua própria paisagem”. Mais uma vez, o gesto criador reinaugura o mundo, principia os homens sob o amplexo da “essência universal das formas justas”. Sophia atravessa o mar como se buscasse na viagem, em outras terras, um encontro com sua poética, seus valores, sua utopia. Não será outro o sentido das idas da poeta à Grécia, a cidades africanas, num circuito que traça um círculo em torno das mesmas procuras e respostas. No Brasil, encontra-as na fala de Helena Lanari, na poesia de Manuel Bandeira, na arquitetura e no urbanismo de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer.

A viagem ao Brasil aconteceu no ano de 1966. Foi então que, no Rio de Janeiro, conheceu Helena Lanari. À época, em torno de José Paulo Moreira da Fonseca, poeta da geração de 45 que a partir de 1957 se destacaria também como pintor, reunia-se um grupo de mais ou menos dez amigas, interessadas em arte e literatura . Reuniam-se regularmente na casa de uma delas, no bucólico bairro do Jardim Botânico. Moreira da Fonseca ministrava aulas e, vez por outra, levava alguns convidados para que testemunhassem sobre suas próprias obras. Estando no Rio, Sophia de Mello Breyner Andresen foi uma das convidadas. Diante da grande poeta portuguesa, as ouvintes mostraram-se algo tímidas, com exceção de uma delas: Helena Lanari, sempre expansiva, falante, inteligente e sensível. As personalidades marcantes – e tão diferentes entre si – de Sophia e Helena encantaram-se mutuamente, de imediato. Antes de regressar a Portugal, a poeta passou alguns dias na casa de praia da nova amiga brasileira, em Arraial do Cabo, e foram juntas a Ouro Preto. Reencontram-se dois anos depois, em Lisboa, e mantiveram sempre os laços da amizade.

Helena não era uma intelectual ou uma poeta. Casada com um industrial mineiro, Cássio Umberto Lanari, dividia com o marido o gosto por colecionar obras de arte e antiguidades. Sua sensibilidade, no entanto, aproximava-a de coisas tão simples quanto cozinhar, receber os amigos, desenhar, executar pequenos trabalhos manuais ou compor, como se apenas manipulasse a matéria plástica das palavras, breves poemas-colagens.

É importante acrescentar, ainda, que Helena Lanari era natural do Rio de Janeiro, o que significa dizer que Sophia identificou na fala carioca “o português do Brasil”.

Em sessão realizada na Academia Brasileira de Letras a 8 de junho de 1966, a poeta faria um breve resumo de sua estadia em terras brasileiras:

Minha passagem pelo Brasil foi muito rápida, porque, como disse [o presidente da ABL], não é só um país, é um continente e, justamente, uma das coisas que mais me comoveram no povo brasileiro foram dois aspectos: a continuação de certos costumes portugueses e da língua e mais, também, o aspecto ecumênico do Brasil. Eu não posso esquecer-me, por exemplo, da primeira missa que ouvi no Brasil. Estava cercada de gente de todas as partes do mundo, tive uma profunda impressão de comunidade, sentindo desabrochar um humanismo novo. Eu vi Brasília, Ouro Preto, Congonhas, Belo Horizonte, Cabo frio e vi, em volta do Rio, tudo o que se podia ver.

Ao descobrir na articulação da língua portuguesa falada no Brasil os valores ideais de sua poesia, Sophia de Mello Breyner como que põe, no “Poema de Helena Lanari”, a fala numa posição precedente à da escrita. Ou, ainda, é como se descobrisse a poesia no simples ato de ouvir as palavras. Quanto a isso, é a própria poeta quem nos conta algo esclarecedor:

Na minha infância, antes de saber ler, ouvi recitar e aprendi de cor um antigo poema tradicional português, chamado Nau Catrineta. Tive assim a sorte de começar pela tradição oral, a sorte de conhecer o poema antes de conhecer a literatura. (III, 349)

A imagem do “poema” anterior à “literatura” posiciona claramente objetos, conceitos, valores. A infância que conhece a fantasia e a imaginação por meio do contar, do cantar, do recitar textos tradicionais aproxima Sophia da remota e perpétua linhagem da oralidade. O conjunto que forma a instituição “literatura” – a escrita e os livros, os escritores e as editoras, as livrarias e os leitores, a universidades e as escolas etc. – chegaria, para a poeta, após o conhecimento do que ela nomeia “o poema”, mas poderia designar igualmente “a poesia”:

Eu era de fato tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele próprio.

O hábito de ouvir poemas responderia, então, como a origem do apurado ouvido de Sophia de Mello Breyner Andresen, que, menina ainda, procurava ouvir não só o que se contava, mas também aquilo que fluía nas coisas, como o ar que as envolvia:

Pensava também que se conseguisse ficar completamente imóvel e muda em certos lugares mágicos do jardim, eu conseguiria ouvir um desses poemas que o próprio ar continha em si.

A mesma atitude seguirá adiante com a poeta já madura, sempre concentrada em escutar do poema “no ar claro nas tardes transparentes/ sua sílabas redondas” (II, 120). O ouvido que percebe a nitidez fônica das palavras no português do Brasil mostra sua prioridade com relação à inteligência que avaliaria, para além do som, o significado das palavras, visto que a sílaba surge como algo em si mesmo, como se o som contivesse inteiramente toda a forma e seu significado.

As sílabas semelham a música. Não qualquer música: “a música do ser”. E, num desdobramente imprevisto, as notas musicais ganham a dimensão das sílabas, a compor uma escrita:

Palavras silabadas
Vêm uma a uma
Na voz da guitarra (III, 33)


Outras coisas, aparentemente silenciosas apenas, podem ser sentidas como sílabas, conforme o poema “Vela”, onde elas aparecem ao modo do que poderíamos chamar de “microestrutura do sentimento”:

Em redor da luz
A casa se concentra
Numa espera densa
E quase silabada (III, 35)


Mas, sobretudo, a sílaba é a unidade mínima da poesia que se ouve no silêncio, a compor a escrita de uma existência:

O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita (III, 89)


O trabalho poético para Sophia estará sempre ligado à escuta. Tudo se passa como se a poeta madura permacesse igual a si mesma, intacta no tempo, sem que tivesse deixado de ser um só instante a menina que imaginava ser possível ouvir os poemas que viviam prontos no ar, desde que conseguisse estar imóvel e muda em “certos lugares mágicos do jardim”. Afinal, é disto que nos fala, colocando-se como que na posição de uma colegial, infantil e obediente: “o poema aparece feito, emerge, dado (ou como se fosse dado). Como um ditado que escuto e noto.” (III, 166). A explicação não poderia mesmo estar em outro lugar que não a infância: “É possível que esta maneira esteja em parte ligada ao facto de que, na minha infância, muito antes de eu saber ler, me terem ensinado a decorar poemas.” Esta permanência de um traço vincado na meninice vai definir a própria concepção que Sophia terá de si mesma como criadora e de todo criador: “o poeta é um escutador.” Quanto à sua oficina, deixa claro que há sempre uma zona indefinível, “uma parte que se passa na zona onde eu não vejo”, diz, e podemos acrescentar que esta faixa que ela não vê é a que ela escuta. Ora, o ouvido está naturalmente ligado a algo invisível, o som. Mas, enquanto este é um fenômeno que consiste na propagação de ondas sonoras por um corpo que vibra em meio material elástico, especialmente o ar, a emissão do poema resultaria da vibração de que corpos? Como reconhecer-lhe a direção, a origem, a intensidade, a altura, a continuidade? Questões elementares de acústica simplesmente não podem ser levantadas no universo da criação poética, onde a física tem leis próprias. Não há como saber como vem e de onde vem o poema. Nessa aceitação humilde – como quem ouve um ditado e o escreve – e cabe ao poeta manter-se apto para ouvir. Assim, é fundamental notar, o poema é menos gratuito do que parece, na medida em que exige um posicionamento correto – na infância, era preciso estar em certos lugares mágicos do jardim – uma atenção extrema. Ou seja, o funcionamento do ouvido que ouve o poema – ouvido interno, da alma – não é involuntário. Ouvir é um esforço:

Sei que o poema emerge, emerge e é escutado num equilíbrio especial da atenção, numa tensão especial da concentração, O meu esforço é para conseguir ouvir o “poema todo” e não apenas um fragmento. Para ouvir o “poema todo” é necessário que a atenção não se quebre ou atenue e que eu própria não intervenha. É preciso que eu deixe o poema dizer-se.

Na poesia de Sophia de Mello Breyner, os seres, as coisas, a natureza, tudo é habitado por deuses, por Deus, e tudo está diante dos olhos: “No Golfo de Corinto/ a respiração dos deuses é visível” (III, 62). O que vive encerra uma existência completa, um sentido em si mesmo, e sendo cada coisa simultaneamente parte de uma aliança, a vida de cada grão, concha, bicho, árvore, barco, coluna, seja o que for, pode comunicar-se com outra vida, fazer-se ouvir, revelar-se.

Para que o poema seja “dado” é necessário manter, no silêncio, uma absoluta atenção ao fio que une o que “no tempo dividido” está isolado; fio que flui no ar, como uma onda, sonora. Assim, o poema pede que a poeta “viva atenta como uma antena” (III, 95). Do mesmo modo, nos olhos de Vieira da Silva, a pintora, Sophia reconhece “a atenção da Sibila, da bússola, do sismógrafo, da antena” (III, 342). Noutro poema, “Vieira da Silva”, de Musa, a artista aparece mais uma vez com seus grandes olhos, instrumentos de captação do real e sinais exteriores de uma atenção do espírito, apto a ver o invisível:

Atenta antena
Athena
De olhos de coruja
Na obscura noite lúcida


A compreensão do artista como receptor, “antena”, implica, sem dúvida, uma determinada postura diante da questão da inspiração. Para Sophia, está claro, poesia é revelação. Revela a condição humana, a existência. O poema não alude ou traduz: as palavras são o dizer da revelação, donde o poema ser ouvido como uma forma pronta no universo, e as palavras serem o nome original de cada coisa. O poeta é aquele que indaga os nomes:

Ia e vinha
E a cada coisa perguntava
Que nome tinha. (I, 193)


Os nomes já existem, os poemas já estão escritos. A própria poeta se pergunta: “Como, onde e por quem é feito esse poema que acontece, que aparece como já feito?” (III,167). Sophia, como “os antigos”, pode momentaneamente dar a este “como, onde e quem” o nome de Musa:

Aqui me sentei quieta
Com as mãos sobre os joelhos
Quieta muda secreta
Passiva como os espelhos

Musa ensina-me o canto
Imanente e latente
Eu quero ouvir devagar
O teu súbito falar
Que me foge de repente (III, 140)


Mas Sophia prefere, como regra, reconhecer sua dificuldade na nomeação daquilo que outros ainda chamariam “o subconsciente”:

Por mim, é-me difícil nomear aquilo que não distingo bem. É-me difícil, talvez impossível, distinguir se o poema é feito por mim, em zonas sonâmbulas de mim, ou se é feito em mim por aquilo que em mim se inscreve. Mas sei que o nascer do poema só é possível a partir daquela forma de ser, estar e viver que me torna sensível – como a película de um filme – ao ser e ao aparecer das coisas. E a partir daí uma obstinada paixão por esse ser e aparecer. (III, 167)

Tudo é ainda mais belo e perfeito em função mesmo da inexorável indecisão: se o poema é feito por ela em “zonas sonâmbulas”, como determinar os graus de consciência e vontade desta operação? Se é feito nela por algo que nela se inscreve, onde a consciência e qual o seu papel? Não há como decidir. Sophia de Mello Breyner talvez dissesse, com Novalis, que a magia poética seria uma fusão da fantasia com a força do pensamento, um “operar”. Cada palavra é encantamento, evocação, oração. Mas isso só é possível com aquele esforço de realização, de concentração, de plenitude, num ponto tão alto e perfeito que já não será possível distinguir sujeitos e objetos:

O poema é
A liberdade

Um poema não se programa
Porém a disciplina
– Sílaba por sílaba –
O acompanha

Sílaba por sílaba
O poema emerge
– Como se os deuses o dessem
O fazemos (III, 205)


A impossibilidade de definir limites alarga a questão da criação poética na medida em que não a encerra numa explicação irracionalista ou baseada numa destreza mental. Quanto a isso, talvez um dos poemas mais eloqüentes seja o “Triptico ou Maria Helena, Arpad e a pintura”, que trata de forças absolutas: o criador, a criação, a obra. São entidades plurais que se entrelaçam em tensão, criam sistemas de atuação – dizer, significar, dar a ver, sentir, transformar, comportar, tornar belo, obscurecer, colher, torcer etc – que estilhaçam as operações estritamente funcionais, a racionalidade cartesiana, deslocam a lógica convencional para espaços onde os conceitos deixam ver zonas intercambiáveis, nas quais tempos e matérias guiam-se por outras leis, mais sutis:

I
Eles não pintam o quadro: estão dentro do quadro

II
Eles não pintam o quadro: julgam que estão dentro do quadro

III
Eles sabem que não estão dentro do quadro: pintam o quadro


Estaríamos mais próximos do livre movimento na área indefinível e transfiguradora da sensibilidade plena, daquela “forma de ser, estar e viver” que faz o artista sensível “ao ser e ao aparecer das coisas”, como acontece à “película de um filme”. Não por acaso, a imagem cinematográfica surge a Sophia para dizer do comparecimento das coisas, pois aponta para o desdobrar do “ouvir” em “ver”, para a plena sensibilidade, que tem algo da pele fílmica, na qual se grava o som óptico . Ouvir implica dizer que implicar ver:

Digo:
“Lisboa”
Quando atravesso – vinda do Sul – o rio
E a cidade a que chego abre-se como se do meu nome nascesse
………..
Digo o nome da cidade
– Digo para ver (III, 247)


Mas se a poética de Sophia de Mello Breyner não se restringe ao trabalho, ao artesanato e à técnica, de modo algum aproxima-se da negligência, do despreparo ou da aceitação ingênua da espontaneidade. Tais valorações sequer podem ser levantados diante de um poesia que instala exatamente a diluição dos termos entre o fazer, a matéria e o artista.

Nas obras de muitos outros poetas, o abandono da construção lúcida e orientada pela escolha não raro leva a uma zona sombria, aos domínios do onírico, de modo que o aspecto desconcertante das associações parecem nascer de um delírio noturno, de uma alucinação, de estados entre o patológico e o transe religioso. Sophia, diferentemente, não cessa de apontar para a necessidade de manter-se atenta, em tensão, mais desperta do que nunca, numa atitude de altíssima concentração de todos os sentidos, de aplicação cuidadosa do espírito, alcançando-se mesmo uma despersonalização, um apagamento de si e de todas as vozes em torno, que é quando o silêncio se deixar escrever pelo poema. Neste, a dinâmica das imagens importa mais que seus significados, é certo, mas da constante e intensa exploração de imagens insólitas não resulta o supra-real, o sem-sentido ou o irracional, mas a absoluta existência das coisas numa linguagem sem ruptura, na qual a natureza parece se revelar inteira, plena, irredutível às explicações que dividem e estancam. Existência irredutível mesmo à própria palavra, sem dúvida, mas só por ela capaz de dizer-se ao mundo.

Na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen, há quase sempre a presença de um eu, que, no entanto, não se restringe à pessoa de Sophia. Ele é uma espécie de entidade ampla, apesar de se configurar como um ponto: “o existente” – aquele que vive o tempo, o espaço, o silêncio, o sonho, o amor, a tristeza, a desilusão. Evidentemente, sentimentos, estados, valores que se dispersam para além do circuito individual. O “Poema de Helena Lanari” parece contrariar esta tendência à dissipação, na medida em que põe em cena um gosto pessoal, uma amizade, um relance biográfico. No entanto, note-se que, apesar da afirmação pessoal reiterada – “gosto de” – o poema volta-se para fora de Sophia. O foco tem origem naquela que ouve, sim, mas ilumina decididamente algo exterior à poeta: a fala brasileira, a voz de Helena Lanari. Daí, o título poder ser lido como máxima desindividualização: o “de” faz sumir a própria poeta como autora. O poema é “de Helena Lanari” (grifo meu). É ela quem diz com sua voz de carioca palavras “concretas como frutos nítidas como pássaros”. É ela que faz o coqueiro “mais vegetal”. Sophia é tão-somente aquela que ouve.

in: Relâmpago; revista de poesia. Lisboa: Fundação Luís Miguel Nava; Relógio d' Água, n° 10, out. 2001