Dylan, belo belo
É linda a voz de Bob Dylan. É uma fala vertical, de pé. Um antigo arranha-céu em meio a plantações de milho.

Ainda que profundamente americana e do Norte, a voz de Bob Dylan nunca pertenceu ao que Octavio Paz chamou de “natureza utópica da América”. O arranha-céu pertence à paisagem mas, simultaneamente, recusa-a, como se fosse a voz de Walt Whitman ao avesso, irredutível, arredia à assimilação. Parece vir de lugar-nenhum, como se perpetuamente fosse a emissão (o som de seu motor) de um mundo em marcha.

Voz única e desamparada, ouvem-se nela muitas outras vozes: o country, a folk music, o blues, o rock-n’-roll e o pós-rock-n’-roll, a América rural e urbana. Na voz de Bob Dylan cantam Hank Williams, Muddy Waters, Johnny Ray, Johnny Cash, Greenwich Village, os cantores dos cafés, os poetas da geração beat. Na voz de Bob Dylan soam ainda a sua voz e a de Joan Baez em Washington, a voz de Luther King, a voz de um milhão de anônimos, vê-se a voz negra dos negros, a voz negra dos judeus. Voz do século americano, vem dar na estrada que vai dar em Tom Waits, Kurt Cobain, Vincent Gallo, Thom York. E, sendo tudo isso, não é a soma impossível, mas uma fusão luminosa, perturbadora.

A voz é um modo de ser da canção. E Bob Dylan não é um cantor, ele sequer canta (como não dançava a bailarina de Mallarmé). Há, porém, uma voz-Dylan que redefine perpetuamente os princípios do canto. Tudo parece ser a voz, ou prolongamentos dela, mesmo a guitarra, a gaita, os outros instrumentos e os ruídos das gravações ao vivo, os aplausos, as vaias, o silêncio, tudo soa como vozes da voz. A voz-Dylan é, antes de mais nada, uma fala que, estranhamente, parece excessiva em sua economia restritiva e monocórdia. É uma fala extensa, hermética, de imagens tortuosas, onde tudo parece gastar-se mais que o desejável numa América-mundi moralista, severa, seja cristã ou judaica. A canção-Dylan é uma força ordenadora, ainda que prolixa: narrativas, casos, metáforas, imagens, restos, cortes, montagens, entre a crônica e o épico. Há, portanto, muito das técnicas de construção da prosa e da poesia modernas, mas também do cinema (ficção e documentário em doses iguais, de modo que não se saiba o que é uma coisa e outra) e das artes plásticas.

Pergunto-me então se a voz-Dylan teria algum parentesco com a solidão urbana e desamparada das telas de Hopper. Penso que sim, desde que se pudesse aplicar a elas algo da distorção de Francis Bacon, posto que a voz-Dylan é um caminho sinuoso e subterrâneo, sob a pele, entre vísceras, que no entanto se faz audível (visível). O canto-Dylan é aberrante, uivo, por isso não lhe interessam vozes suaves, sobre a pele.

Em Modern times, já o título chapliniano faz ver alguma ironia. E também sua capa: a tipografia ingenuamente aerodinâmica sobre a foto pb de um automóvel em movimento, restolhos de modernidade e progresso, portanto. Bob Dylan sempre se interessou pelo que se poderia chamar “modernidade antiga”, de resto um modo de não se deixar aprisionar pela novidade. Modern times olha com irônica melancolia a atualidade que envelhece antes que se possa compreendê-la, reconhecendo que é preciso dar-lhe algum abrigo: o 11 de setembro, o furacão Katrina, a política econômica norte-americana. Devastação e morte, sim. Mas nada se parece com uma mera reportagem da vida nos EUA. E a devastação é também existencial, empreendida pelo amor, pela vingança, pelo remorso e pela passagem do tempo. Tudo soando numa voz sem tempo, voz para sempre.